O Estado de S. Paulo

Ruta del Desierto

Igrejas e povoados fantasmas

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Depois de horas de curvas e solavancos em vias empoeirada­s, o café da manhã já era uma lembrança distante e o estômago roncava. Chegamos a um povoado, o quarto do dia, que pelas ruas asfaltadas parecia mais bem cuidado que os demais. Dirigimos até a praça, onde estava fincada a igreja. Que estava trancada. Não havia viv’alma em parte alguma: nem no posto de saúde (também fechado), nem nos banheiros públicos (esses abertos, ainda bem). Nos três dias da expedição que fizemos pela Ruta del Desierto, essa era a rotina normal: não encontrar ninguém.

Nesse dia, nosso guia abriu a caçamba da picape, tirou dela uma grande tábua e cavaletes, montou a mesa com toalha. De uma grande bolsa foi sacando os ingredient­es para rechear as tortillas que seriam o nosso almoço: latas de atum, milho e feijãopret­o, um pote com folhas de alface, alguns tomates e abacates, um saco de batata palha, azeite. Entre armar nosso farnel, comer e desmontar tudo, passamos umas boas duas horas em Belén.

Ninguém apareceu. Em nenhum momento. Parecia que estávamos na cidade cenográfic­a de algum filme – em cuja história havia um toque de recolher como o de Bacurau, ou uma tragédia que fez toda a população se mandar dali.

Nosso percurso pela Ruta del Desierto foi cruzando povoados que um dia receberam missões jesuíticas: Codpa, Guañacagua, Timar, Ticnamar, Belén, Parinacota. Cada um não tem mais que 100 habitantes. A falta de perspectiv­as acaba expulsando os jovens para cidades maiores, e o que fica são vilarejos que parecem entregues à própria sorte.

Perdido nesse fim de mundo, um simpático casal andava com as duas filhas pequenas a tiracolo pela estrada de terra que liga Codpa a Guañacagua. Oferecemos carona à família e, nos poucos minutos que durou esse encontro improvável (como também seria improvável que surgisse mais alguém para ajudá-los), descobrimo­s que eles moravam em Valparaíso. A moça tinha resolvido voltar com o marido e as filhas à região de Arica, onde ela cresceu. “Nada aqui mudou”, ela constatou.

As igrejas construída­s pelos espanhóis ainda estão lá. Mas todas as que vimos estavam fechadas, talvez à espera de um futuro restauro. A primeira de nosso caminho, em Codpa, é a segunda mais antiga de todo o Chile. Construída no século 17, a Igreja de San Francisco de Tours teve as portas feitas com madeira de cactos nativos e as vigas, com álamos trazidos pelos espanhóis.

O campanário (a torre do sino) é outro traço da influência ibérica. Os outros templos pelos quais passamos tinham as mesmas caracterís­ticas. Parada estratégic­a. Foi em Codpa, 2.200 metros acima do nível do mar, que passamos a primeira noite, para ajudar o corpo a se acostumar com a diferença de altitude. Provamos o vinho pintatani, uma cepa produzida ali há mais de 200 anos. Com forte teor alcoólico, doce e licoroso, ele lembra o vinho do Porto. Da bodega que visitamos, Quinta Santa Elena, saem apenas 400 garrafas por ano.

Na visita, que custa 1.000 pesos ou R$ 6 (agende no +569 4420-3155 ou anasoza.uta@ gmail.com), são mostrados os parreirais e o processo de produção, com degustação de uma tacinha ao final. Cada garrafa de 750 ml sai por 10 mil pesos (R$ 59).

Mudanças de cenário. Se não há tanta vida nos povoados, a graça da viagem é acompanhar as mudanças de paisagem que vão se sucedendo na medida em que cruzamos diferentes tipos de deserto, até a estepe do altiplano. Com a altitude, mudam a fauna e a flora, mudam as cores.

Pouco depois de sair da Carretera 5 pelo trevo que dá acesso à região de Codpa, a primeira surpresa foi um mar de apachetas ao redor da rodovia. São pilhas de pedras que incas e outras civilizaçõ­es andinas faziam – hoje, viajantes, guias e moradores mantêm a tradição viva.

Existem duas explicaçõe­s para elas: a mais mítica diz que seriam oferendas para pedir proteção à Pachamama (a Mãe-Terra). De acordo com a outra, essas pilhas eram usadas como pontos de referência pelos viajantes, para marcar o caminho de volta.

Quando a rota começa a subir, a estrada sinuosa vai contornand­o vales e penhascos, com duas cordilheir­as (primeiro a da Costa e depois a dos Andes) se erguendo no horizonte. No início as montanhas ainda são nuas e áridas como em Arica e a única vegetação são enormes cactos em forma de candelabro.

Montanha acima. Aos poucos, as colinas começam a ser recobertas por tons de bege e verde da vegetação pré-cordilheir­a, irrigada pela água das geleiras. Nas encostas, frutas e hortaliças são plantadas em terraços, nas chamadas zonas de cultivo, outra herança inca. Surgem bodes, ovelhas, cabras.

A partir de 3 mil metros de altitude, começam a dar o ar da graça os tais camelídeos. Ver um guanaco exige sorte e atenção: eles ficam ao redor da estrada, mas se camuflam facilmente pela cor da pelagem, opaca, entre os tons café-avermelhad­o e oliva, que o ajuda a se esconder dos predadores. A única árvore que sobrevive no altiplano é a queñoa, um arbusto de galhos retorcidos que lembra um grande bonsai.

O caminho até Putre não chega a 300 quilômetro­s, mas é cansativo. A mudança de altitude acentua o desgaste físico. A experiênci­a toda ganhou muito mais corpo e significad­o graças ao guia e seus conhecimen­tos de geologia, botânica, biologia, geografia. Com Juan Pablo, aprendemos sobre tudo: hábitos dos animais selvagens, plantas medicinais, crenças andinas. Mais que simples curiosidad­es, as explicaçõe­s nos ajudaram a entender a riqueza daquilo que nos cercava.

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Herança. Capela em Parinacota: há várias como essa no trajeto – normalment­e, fechadas
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Idílicas. Cercadas por rochas vulcânicas, as Lagunas Cotacotani são morada de diversas aves
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FOTOS: THIAGO LASCO/ESTADÃO
 ??  ?? Flashes de Guañacagua. Campanário da igreja do povoado; no caminho para o vilarejo, demos carona para uma família de viajantes
Flashes de Guañacagua. Campanário da igreja do povoado; no caminho para o vilarejo, demos carona para uma família de viajantes
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