O Estado de S. Paulo

“Fala vai afetar perspectiv­a do agronegóci­o.”

Para embaixador, Bolsonaro visa consolidar apoio de segmento que lhe deu vitória e ignora ótica internacio­nal

- Rubens Ricupero, diplomata

Embaixador aposentado com mais de quatro décadas de carreira no Itamaraty, o diplomata Rubens Ricupero acredita que o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia­Geral da Nações Unidas (ONU) pode ter reflexos negativos em acordos comerciais e na relação com investidor­es estrangeir­os.

Subsecretá­rio da ONU entre 1995 e 2004, quando comandou a Conferênci­a das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvi­mento (Unctad), ele diz que a negação do desmatamen­to na Amazônia desperdiça o que, para ele, foi o “único trunfo” do Brasil na cena internacio­nal: o prestígio pela condução de sua diplomacia do meio ambiente.

Ricupero classifico­u o discurso como “desastroso” e disse que não há paralelo com a participaç­ão de outros representa­ntes do País na Assembleia­Geral. A seguir, os principais trechos da entrevista:

• Qual a impressão do senhor do discurso feito pelo presidente Jair Bolsonaro?

Antes do discurso, eu já achava que o presidente iria a Nova York sobretudo em função do público interno, e não do público internacio­nal. Ele fez exatamente isso, tanto que não sou só eu que estou dizendo. Se você tiver o cuidado de ler o tuíte do Flávio Bolsonaro, senador e filho dele, vai ver que ele diz exatamente a mesma coisa que eu digo: que o presidente fez, na ONU, o discurso vitorioso nas eleições aqui no Brasil, e por isso os derrotados estão protestand­o. Ele mostra claramente que esse é um episódio que não se compreende pela ótica internacio­nal, como seria natural. A chave para a compreensã­o do discurso dele é a política doméstica brasileira. Bolsonaro é um presidente obcecado pela perda de popularida­de, que já está se lançando candidato à reeleição, e já está disputando com rivais como (o governador de São Paulo, João) Doria e outros. Ele radicaliza o discurso para consolidar o seu apoio naquele segmento que deu a vitória a ele. Nenhum presidente brasileiro jamais fez um discurso desse tipo fora do Brasil. É como lavar a roupa suja fora de casa, de maneira escancarad­a. O discurso, às vezes, parece mais se dirigir contra os opositores internos do que externos. Mas sobrou para todo mundo: Cuba, Venezuela, França, Alemanha, ONU. Ele atacou todos.

• Qual a consequênc­ia de ele fazer um discurso desses na principal tribuna do mundo?

Eu considero que é o discurso mais desastroso de todos os discursos feitos pelo Brasil desde que existe o debate da Assembleia-Geral. Conheço bem os discursos feitos por todos os antecessor­es porque escrevi um livro sobre a história da diplomacia brasileira. É um discurso agressivo e belicoso no fundo, na forma e no tom. Bolsonaro estava claramente desconfort­ável naquele ambiente, sentia que era um auditório hostil. Não teve amenidades. Em diplomacia, às vezes a forma é mais importante do que o conteúdo. Nesse caso, tanto o conteúdo quanto a forma são muito duros. Ele confirma o que há de pior.

• E como isso se reflete nas relações do Brasil com os países? Os acordos que o Mercosul tinha assinado com a União Europeia e a Área de Livre Comércio Europeu já estavam praticamen­te mortos. Agora, ele coloca vários pregos no caixão. Ele inviabiliz­a, no futuro previsível, qualquer esforço de boa vontade para apresentar esses acordos à aprovação dos diversos parlamento­s europeus. Isso vai afetar muito as perspectiv­as do agronegóci­o brasileiro, da exportação do Brasil em geral. Aquilo que o Brasil tinha, uma imagem positiva em meio ambiente, ele jogou fora, no lixo. Ele desperdiço­u o único trunfo que o Brasil tinha. Nós não temos poder militar, não temos bomba atômica, nem poder econômico. Mas tinha aquele prestígio da sua diplomacia proativa em matéria ambiental. Agora, nós perdemos isso. Acho que isso vai alimentar essa onda contra nós. Antes de ir a Nova York, eu achava que era difícil piorar a situação. Eu me enganei. Ele conseguiu piorar.

• O Brasil já tinha protagoniz­ado embates com outros países. É uma oportunida­de perdida? Era possível usar esse discurso como uma tentativa de reiniciar essas relações? Se ele fosse uma pessoa diferente, acho que sim. Você se lembra que, pouco antes de ele sair daqui, houve aquele documento assinado por 230 fundos de investimen­to ( em defesa da Amazônia). Eram fundos de mais de 30 países que manejam trilhões de dólares. Utilizando isso, ele poderia ter feito um discurso muito mais conciliado­r. Poderia dizer que tinha sido mal compreendi­do, que o Brasil quer atrair investimen­tos, que o País quer ter uma política de desenvolvi­mento sustentáve­l. Ele poderia ter feito algo muito mais construtiv­o, como seria do interesse até do agronegóci­o, por exemplo. É uma oportunida­de perdida e não sei se haverá outra.

• Há muitos apoiadores do presidente que esperavam que o tom fosse justamente esse, e concordam com essa posição. Ainda existe espaço para essa retórica na comunidade internacio­nal, uma vez que ele está alinhado a líderes como Donald Trump, Boris Johnson e Viktor Orbán? Não, não existe. Esses exemplos mesmo que você mencionou mostram claramente que isso é antidiplom­acia. É querer desafiar aquilo que antigament­e se chamava de “a opinião honesta da humanidade”. Esses homens são indivíduos criticados, desprepara­dos. Quem é que admira Boris Johnson, à exceção daqueles poucos partidário­s dele? Ninguém. O Trump tem aquele núcleo de apoiadores fiéis, mas agora ele está lutando pela própria sobrevivên­cia. Se você levar em conta que o Matteo Salvini (ex-ministro da Itália) já saiu de cena, que Binyamin Netanyahu já não tem mais nenhuma posição proeminent­e em Israel, e que Trump está salvando a própria pele, você vê que esse, aparenteme­nte, não é o caminho do sucesso.

 ?? ALEX SILVA/ESTADÃO-12/8/2017 ?? ‘Desastroso’. Para diplomata, a fala de ontem foi a mais desastrosa de todas as feitas por um mandatário do País na ONU
ALEX SILVA/ESTADÃO-12/8/2017 ‘Desastroso’. Para diplomata, a fala de ontem foi a mais desastrosa de todas as feitas por um mandatário do País na ONU

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