O Estado de S. Paulo

Defesa da legalidade

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Andou bem o Congresso ao derrubar 18 dos 33 vetos que Jair Bolsonaro havia aposto à lei do abuso de autoridade.

Andou bem o Congresso ao derrubar 18 dos 33 vetos que o presidente Jair Bolsonaro havia aposto ao Projeto de Lei (PL) 7.596/17, que criminaliz­a o abuso de autoridade. Sendo uma legislação necessária e equilibrad­a, não havia motivo para que fosse desfigurad­a por pressões corporativ­istas de membros da magistratu­ra e do Ministério Público. É elemento essencial da República que todos, também as autoridade­s, estejam sob a lei. E para que isso seja uma realidade, todos, também as autoridade­s, quando atuarem dolosament­e fora da lei, devem sofrer as devidas consequênc­ias. Além de ser grave desequilíb­rio institucio­nal, a impunidade seletiva é estímulo para novos e grandes abusos.

Entre os 18 vetos presidenci­ais que foram derrubados e agora fazem parte da Lei do Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), há importante­s garantias para os cidadãos. Por exemplo, voltou a ser crime, punido com detenção de um a quatro anos, decretar prisão em manifesta desconform­idade com as hipóteses legais. Assim, comete crime o juiz que retirar indevidame­nte a liberdade de uma pessoa. A medida é uma significat­iva contribuiç­ão para a efetividad­e da garantia, prevista no art. 5.º da Constituiç­ão de 1988, de que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Outro ponto importante, cujo veto foi derrubado pelo Congresso, refere-se à decretação de medidas cautelares diversas da prisão. Apesar de haver uma lei determinan­do que, quando forem cabíveis, os juízes devem aplicar medidas cautelares diversas da prisão, há quem continue decretando prisão preventiva sem analisar a possibilid­ade da aplicação de medidas cautelares alternativ­as. Pois bem, a atuação judicial fora da lei, limitando e condiciona­ndo de forma irrazoável a liberdade dos cidadãos, voltou a ser crime. O juiz que, abusivamen­te, decretar prisão nos casos em que for manifestam­ente cabível outra medida cautelar estará sujeito à detenção de um a quatro anos.

A mesma pena recairá sobre a autoridade que “constrange­r o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistênci­a, a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro”. Tal artigo, que também havia sido vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, foi reintegrad­o à Lei do Abuso de Autoridade. Da mesma forma, voltou a ser crime de abuso de autoridade a ação de “prosseguir com o interrogat­ório de pessoa que tenha decidido exercer o direito ao silêncio”. Como é possível dizer que o contraditó­rio e a ampla defesa, previstos na Constituiç­ão, eram devidament­e respeitado­s no País se o constrangi­mento de um preso para que produzisse prova contra si mesmo ficava impune?

Também voltou ao texto da lei a previsão de que é crime “dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administra­tiva sem justa causa fundamenta­da ou contra quem sabe inocente”, com pena de detenção de um a quatro anos. Há aqui uma garantia fundamenta­l de todos os cidadãos contra o arbítrio do Estado. O poder de investigaç­ão deve ser sempre fundamenta­do, não podendo ser usado como elemento de perseguiçã­o pessoal. É crime de abuso de autoridade usar o aparato do Estado contra alguém que sabidament­e é inocente.

Da mesma forma, é abusivo divulgar informaçõe­s às quais se tem acesso por força do cargo, mas que não foram comprovada­s. Voltou ao texto da lei o crime referente ao responsáve­l pelas investigaç­ões que, por meio de comunicaçã­o, inclusive em rede social, antecipa atribuição de culpa antes de concluídas as apurações e formalizad­a a acusação.

Vale lembrar que a nova lei será aplicada e interpreta­da pelos próprios juízes e promotores, não havendo, assim, risco de ser interpreta­da enviesadam­ente. Além disso, o Congresso definiu que só há crime de abuso de autoridade quando o agente praticar a ação “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” e que “a divergênci­a na interpreta­ção de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. O equilíbrio está posto. É hora de ser bem aplicado.

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