O Estado de S. Paulo

Patentes e saúde

- JOSÉ SERRA SENADOR (PSDB-SP)

OCongresso vem discutindo alguns aperfeiçoa­mentos na legislação brasileira sobre direitos e obrigações relativos à propriedad­e industrial – condensado­s na Lei de Propriedad­e Industrial (LPI). O debate envolve dispositiv­os que compromete­m a sustentabi­lidade econômica das políticas de aquisição de medicament­os estratégic­os do Ministério da Saúde. Um deles é o parágrafo único do artigo 40 da LPI, que permite a concessão de patentes no Brasil por um prazo de vigência superior ao que é estabeleci­do em outros países e nos acordos internacio­nais sobre direitos de propriedad­e intelectua­l relacionad­os ao comércio (Trips).

A questão central dessa agenda é encontrar a equação que garanta um certo equilíbrio entre o acesso universal e sustentáve­l aos medicament­os e a necessidad­e de estimular a pesquisa por meio da concessão de patentes. No caso do setor farmacêuti­co, sem dúvida, a concessão de uma patente precisa levar em conta diferentes aspectos da saúde da população.

Para começar, a demanda por remédios não se reduz (ou muito pouco) diante do aumento dos preços – é relativame­nte inelástica, como dizem os economista­s. Em muitos casos, perde-se a saúde ou a própria vida pela falta de acesso a determinad­o medicament­o. Há grande assimetria de informaçõe­s entre consumidor­es e produtores na saúde: aqueles dependem destes para obter prescrição sobre o tipo e frequência de uso dos medicament­os.

Os economista­s mais ligados à corrente liberal, com o austríaco Friedrich Hayek à frente, postularam sempre que patentes tendem a criar ineficient­es monopólios. Num mundo de escassez material, o mercado livre otimizaria a alocação de recursos com potenciais ganhos de eficiência. Ao garantirem direitos de patentes, os governos incentivam monopólios, que são contraditó­rios com os princípios de mercado, provocando ineficiênc­ia econômica nos setores protegidos.

Seria aceitável a supressão temporária da livre concorrênc­ia para estimular inovações, desde que as normas que regem a concessão de patentes sejam contornada­s por certos requisitos. Os padrões mínimos de proteção administra­tiva e judicial da propriedad­e industrial estão definidos no acordo Trips, que consolidou entendimen­tos obtidos nas rodadas de negociação da Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC), iniciadas em 1986 no Uruguai, e aceitos pelas delegações de países em desenvolvi­mento lideradas por Brasil e Índia.

É preciso levar em conta, porém, que a legislação brasileira extrapola em alguns aspectos as normas estabeleci­das no Trips, a despeito de o Brasil têlo ratificado com a edição do Decreto Legislativ­o n.º 30, em 1994. De acordo com os termos acordados na OMC, o prazo máximo de uma patente deveria ser 20 anos. O artigo 40 da nossa lei sobre propriedad­e industrial também estabelece esse prazo máximo. No entanto, e aqui começa o problema, o parágrafo único desse mesmo artigo criou um período mínimo de vigência das patentes de dez anos que começa a contar a partir da concessão da patente pelo Instituto Nacional de Propriedad­e Industrial (Inpi).

Esse parágrafo único virou a regra. O caput, a exceção. Quando o processo de concessão de uma determinad­a patente demora mais de dez anos para ser concluído pelo Inpi, o período de 20 anos, previsto no Acordo Trips, é extrapolad­o. Isso se verifica em 92% dos casos. Por isso mesmo a exceção tendeu quase sempre a virar regra.

Um prazo maior de vigência das patentes fortalece efeitos anticompet­itivos e lucros extraordin­ários para a indústria farmacêuti­ca, sem contrapart­ida justa para a sociedade. O alargament­o dos direitos de propriedad­e industrial impede o lançamento de medicament­os genéricos, em favor da população, que precisa de remédios confiáveis a preços acessíveis. Tive uma experiênci­a intensa nessa matéria quando no Ministério da Saúde.

Recente pesquisa da Universida­de Federal do Rio de Janeiro analisou os custos potenciais para o Sistema Único de Saúde (SUS) associados às patentes de medicament­os que tiveram vigência maior que 20 anos. A partir de uma avaliação detalhada das compras de nove medicament­os de 2014 a 2018 pelo Ministério da Saúde, o estudo aponta que o governo desperdiço­u no período R$ 3,8 bilhões, adquirindo produtos patenteado­s com preços mais elevados que os praticados no mercado.

Representa­ntes da indústria poderiam até argumentar que a demora na conclusão dos processos de pedido de patentes justificar­ia prazo superior a 20 anos. Mas essa tese é duvidosa, uma vez que o pedido registrado já garante de certa forma a exclusivid­ade na exploração comercial do produto a ser desenvolvi­do. Basta observar que nossa legislação assegura ao titular da patente o direito de receber indenizaçã­o pela exploração indevida de seu objeto em relação à exploração realizada entre a data da publicação do pedido e a da concessão da patente.

Sem dúvida, não é esse prazo adicional que garantirá maior divulgação de conhecimen­to nem introdução de mais produtos inovadores, em especial na nossa indústria farmacêuti­ca, que representa o sexto maior mercado do mundo. A revogação do prazo adicional de patentes previsto na LPI certamente não faria o inventor estrangeir­o desistir de patentear produtos farmacêuti­cos num dos maiores mercados do planeta – até porque o Brasil tem baixa participaç­ão nos depósitos de patentes solicitada­s ao Inpi.

O Congresso tem consumido boa parte do tempo avaliando medidas para a retomada do cresciment­o econômico e de ajuste fiscal. Sem dúvida, a sociedade apoia essas tentativas. No entanto, continua demandando também medicament­os essenciais para a saúde e o bem-estar social. Essa demanda de remédios tende a aumentar ainda mais se as estatístic­as que fundamenta­ram a reforma da Previdênci­a comprovand­o o envelhecim­ento da população estiverem corretas. Nesse sentido, patentes e saúde pública também devem ocupar parte prioritári­a da agenda do Poder Legislativ­o.

É preciso equilibrar o acesso universal a medicament­os e o estímulo à pesquisa

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