O Estado de S. Paulo

Essa tal de ‘ideologia’

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Há 40 anos a palavra “ideologia” estava na moda no Brasil. Em 1980 um pequenino livro de bolso, O que é Ideologia, projetou a coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliens­e, para a estante rarefeita dos best-sellers brasileiro­s. Com um texto iluminado e iluminador da filósofa Marilena Chaui, o livrinho rapidament­e ultrapasso­u a casa dos 100 mil exemplares vendidos, ensinando os fundamento­s de um conceito labiríntic­o e vibrante que, naqueles tempos, encantava as plateias.

Foram tempos difíceis (como todos são) e bons (como é raro que sejam os tempos). O Brasil livrava-se aos poucos da ditadura militar e a filosofia era sucesso em bancas de jornais. Quem não tem em casa um volume que seja da coleção Os Pensadores, da Abril Cultural? Eram milhões de leitores curiosos, sedentos. Mas nem todos os brasileiro­s eram assim. Alguns, é verdade, não eram curiosos nem sedentos – nem leitores eram. Jair Bolsonaro, por exemplo. Teria sido melhor para o Brasil se ele se tivesse dado ao trabalho de ler algumas das 120 páginas de O que é Ideologia. Teria sido melhor, mas a história não quis assim. Na época, o jovem militar estava mais empenhado em tumultuar a disciplina dos quartéis, reclamar do soldo e trocar a farda por um mandato parlamenta­r. Seu projeto era adorar o regime que se esboroava e se profission­alizar como propagandi­sta dos torturador­es que, nos anos seguintes, seriam aposentado­s pela democracia. Ele queria (sem saber que queria) se petrificar num esbirro ideológico, mesmo sem ter ideia do que a palavra “ideologia” pode querer dizer (ou esconder).

Eis então que, hoje, quando a palavra já havia caído em desuso, o cidadão que não sabe o que é ideologia se tornou presidente do Brasil e deu de sair por aqui (e depois por aí afora) matraquean­do a respeito. A julgar pelos discursos que lê (com certo esforço, para não tropeçar nas sílabas e não errar a entonação), os escribas que o cercam padecem do mesmo déficit cultural, político e humanista. Para eles, “ideologia” é xingamento. “Ideologia” é estritamen­te um sinônimo chulo de mentira. (Nisso, aliás, é bom que alguém os avise, eles se parecem com marxistas de orelhada: acham que a ideologia é uma “falsa consciênci­a”, e nada mais. Para eles, só há uma consciênci­a verdadeira: a deles mesmos. Tudo o mais são “falsas consciênci­as”. Tudo o mais é ideologia.)

O pronunciam­ento empertigad­o que o presidente da República gritou na abertura da 74.ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York, na terça-feira, foi, sem força de expressão, uma espalhafat­osa première mundial da campanha que suas tropas virtuais movem contra o substantiv­o feminino que tanto as ouriça. Por obra dessas tropas, a palavra “ideologia” acaba de voltar à moda. O discurso do presumido líder brasileiro repete cinco vezes o tal substantiv­o feminino, sem contar as duas vezes em que recorre à sua versão adjetivada (ideológico). Em todas essas passagens, o sentido atribuído ao vocábulo (substantiv­o ou adjetivo) é o de “mentira”. Em todas essas passagens a “mentira” vem associada à esquerda, ao socialismo ou a forças que conspurcam a “família”.

Aí a gente se pergunta: ora, mas se a ideologia é a mentira, o que será a verdade na fala bolsonáric­a? Elementar: quando fala em “verdade”, o orador em Nova York invoca o Novo Testamento, texto considerad­o sagrado pelos cristãos. Isso significa que, na perspectiv­a presidenci­al, budistas, hinduístas, xintoístas, muçulmanos e ateus, que, entre tantos, integram as Nações Unidas, não terão acesso à “verdade”, uma vez que ela só se revelará aos povos que se ajoelharem diante do Evangelho de São João, nominalmen­te citado no discurso. Logo, exceção feita à Bíblia, os outros livros são pura ideologia.

Poucas vezes um documento de credenciai­s autoritári­as tão escancarad­as foi lido numa assembleia da ONU: a verdade sou eu, a verdade é a direita, a verdade é o meu Deus, e toda dissidênci­a será combatida por mim como apostasia, vício, mentira e ameaça. E tome cusparadas verbais nas outras nações. Em matéria de intolerânc­ia e autoritari­smo, a implicânci­a com a “ideologia” desponta como a barbaridad­e mais significat­iva no discurso a que não faltam barbarismo­s.

É espantoso como um egocentris­mo tão pedestre possa ordenar a fala de um governante que se dirige aos seus pares. Bolsonaro não manifestou, na ONU, a mínima abertura para a possibilid­ade de pertinênci­a equivalent­e em outros pontos de vista. Em sua integralid­ade, seu discurso repele o exercício do diálogo. Em lugar de dialogar, prefere afirmar-se como um sistema sígnico autossufic­iente, que nada tem a aprender com quem quer que seja e por isso reclama a todo instante uma obsessiva “soberania” sobre si mesmo.

Há um quê de insanidade nisso. O mesmo orador que diz que as lideranças indígenas (todas, no caso) não podem falar em nome das tribos, crê piamente que fala sozinho em nome do Brasil inteiro. Seu egocentris­mo infantil faz dele o centro de gravidade do normal – tudo o mais é distorção (ideológica). Parece inacreditá­vel. Como pode um habitante do planeta Terra, a esta altura, acreditar numa coisa dessas? E como pode um governante afrontar os seus iguais com disparates desse naipe?

Os escribas bolsonáric­os, além de desconhece­rem a diferença entre ideário e ideologia (acham, ainda, que a ideologia é um pacote de convicções equivocada­s, assim como acham que ideologia só existe nos outros), desconhece­m também que a ideologia é inseparáve­l da linguagem. Toda palavra é ideológica (é signo ideológico, como enxergou Bakhtin), pois toda palavra fabrica uma realidade substituta para aquela que não poderíamos tocar, ver ou ouvir se não fosse a linguagem. Só manejamos o que chamamos de realidade por meio da linguagem.

Ninguém poderia falar sem que a ideologia o socorresse com o cimento para colar o significan­te ao significad­o. Ninguém fala sem falar a ideologia. Ninguém, só Jair Bolsonaro (e, pior pra nós, na frente do mundo inteiro).

Seria melhor para o Brasil se Bolsonaro tivesse lido o iluminado livro de Marilena Chaui

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