O Estado de S. Paulo

Arqueologi­a do discurso

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Há três tipos de líderes políticos: os que estão à frente do seu tempo, como Lincoln ou Roosevelt, os que vivem ao sabor do presente, como Bill Clinton, e os que vivem instalados no passado. Jair Bolsonaro está neste último grupo. Se a direita liberal, democrátic­a e civilizada acreditou que seria possível domesticá-lo, o discurso na ONU servirá como atestado de óbito. O objetivo primordial de Bolsonaro foi a “lacração”, convertend­o o púlpito das Nações Unidas em palanque. Do cacique Raoni aos sujeitos ocultos que o apavoram, ninguém passou incólume. Cuba, Venezuela, mídia, soberania nacional, ambientali­stas, direitos humanos, a “ameaça” do socialismo, entre outros, evidenciar­am um resgate de ideias soterradas no passado, próprias dos anos 1960 ou 70. Se daqui a uns cem anos um arqueólogo fizer um “teste de carbono 14” no discurso de Bolsonaro, terá dificuldad­es para situá-lo. Anacrônico, busca “restabelec­er a verdade” partindo de duas premissas falsas. Afinal, a verdade não é monopólio de um grupo ou partido político, porque, por definição, qualquer deles é parte interessad­a. Em segundo lugar não se pode – por respeito ao projeto iluminista que nos trouxe até aqui – submeter a verdade científica ou a liberdade de imprensa ao sabor dos próprios afetos. Por parcial, nacionalis­ta e caduco, o discurso de Bolsonaro é tão só mais um ato de sua campanha permanente. Ficará marcado na História pelo que é. Jamais pelo que poderia ter sido. LUIZ PERES-NETO regina.lima@novapr.com.br

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