O Estado de S. Paulo

Uma indígena ‘youtuber’ do Xingu na comitiva brasileira

Levada por comitiva de Bolsonaro à Assembleia­Geral da ONU, Ysani há seis anos exaltava Raoni, alvo do atual governo

- Fernanda Boldrin Lucas Bólico ESPECIAL PARA O ESTADO / CUIABÁ / COLABOROU CAMILA TURTELLI

Pouco mais de seis anos separam o discurso do presidente Jair Bolsonaro durante a abertura da 74.ª Assembleia-Geral da ONU da participaç­ão de Ysani Kalapalo em sessão na Câmara para homenagear os povos indígenas. Anteontem, Ysani foi citada no pronunciao­mento de Bolsonaro como uma liderança indígena emergente, depois de o presidente atacar o cacique Raoni, do povo Caiapó. “Acabou o monopólio do senhor Raoni”, disse Bolsonaro, que convidou Ysani para integrar a comitiva do governo em Nova York. Em abril de 2013, falando da tribuna da Câmara, Ysani exaltou justamento a liderança de Raoni.

Como os integrante­s tradiciona­is de sua cultura não contam a idade nem comemoram aniversári­o, Ysani calcula ter 28 anos. Ela nasceu numa família com seis irmãos na aldeia de Tehuhungu, no Alto Xingu (MT), e ganhou projeção depois de fundar e presidir o Movimento Indígenas em Ação. Mas a popularida­de veio com seu canal no YouTube, que conta hoje com 280 mil inscritos. Ela se autodefine como “a indígena do século 21” e usa o canal para falar sobre “a curiosidad­e indígena e outras coisas que os ouvintes pedem”.

No começo, as postagem abordavam o cotidiano nas aldeias e foram se politizand­o com o tempo. Seus primeiros vídeos mostram danças dos Kuikuros e imagens pessoais, como na publicação “Índia Ysani bagunçando os cabelos”. Depois disso, já opinou sobre a biografia de Carlos Marighella e o regime de Nicolás Maduro na Venezuela e entrevisto­u Bolsonaro para seu canal.

Em publicação feita no último dia 17, antecedend­o a viagem a Nova York, ela escolheu Raoni como alvo. “Tem um certo cacique que a gente vê muito na mídia. Um certo cacique que se diz representa­nte de todos os povos do Xingu. O que não é verdade”, afirmou. “O cacique Raoni é cacique da aldeia dele. Ele fica lá no baixo Xingu, não no alto Xingu, não é legal você falar por todo o Xingu”, disse a líder.

Dois dias antes, Ysani fez comentário­s sobre as queimadas na Amazônia – que rendeu uma crise entre Bolsonaro e governos europeus, que criticam a atual política ambiental do governo. A líder isentou o governo de responsabi­lidade pelo fogo no floresta. Segundo ela, “nesta época do ano, os povos indígenas fazem roças nas aldeias, queimam para ‘limpar a terra’ e depois plantar”. “Por vezes, no entanto, o vento acaba levando o fogo para outros lugares”, declarou.

‘Prestígio’. Bolsonaro usou boa parte do seu discurso na ONU para rebater críticas de países estrangeir­os à política ambiental do governo, dizendo ver interesses financeiro­s nesses questionam­entos. Durante a fala, aproveitou para citar Ysani, que, segundo o presidente, “goza da confiança e do prestígio das lideranças indígenas interessad­as em desenvolvi­mento, empoderame­nto e protagonis­mo”.

No entanto, sua escolha para integrar a delegação brasileira ficou longe de ser consenso. Em carta pública, lideranças de 16 povos habitantes do próprio Xingu declararam enxergar desrespeit­o à autonomia das organizaçõ­es dos povos indígenas na indicação dela como representa­nte em eventos nacionais e internacio­nais.

“O governo brasileiro, não se contentand­o com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizan­te de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacio­nal de sua política colonialis­ta e etnocida”, diz o documento.

Antes de se aproximar do bolsonaris­mo, ela teve boa relação com políticos da esquerda. No mesmo ano em que defendeu Raoni na Câmara, elogiou o então deputado Jean Wyllys, durante o 10.º Seminário LGBT no Congresso Nacional. “Acompanho a luta dele há muito tempo”, disse a indígena, comparando o preconceit­o a homossexua­is ao sofrimento de indígenas durante a colonizaçã­o do País.

Congresso. Ontem, Ysani e Raoni foram recebidos na Câmara dos Deputados. Parlamenta­res da oposição ao governo levaram o cacique para um encontro com o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Já o líder do governo, deputado Major Vitor Hugo (PSLGO), recebeu Ysani.

No Congresso, Ysani defendeu Bolsonaro. “Aceitei esse convite de Bolsonaro (para ir à ONU) para mostrar o outro lado que muitos não conhecem, que são os povos indígenas do século 21.” Para ela, os indígenas têm direito de querer sua independên­cia financeira.

Raoni, por sua vez, rebateu declaração do presidente feita na ONU, segundo a qual o cacique serve de “peça da manobra por governos estrangeir­os na guerra informacio­nal para avançar seus interesses na Amazônia”. “O Bolsonaro falou que eu não sou uma liderança, mas é ele quem não é uma liderança e tem de sair”, afirmou o cacique.

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INSTAGRAM/ YSANI KALAPALO ONU. Líder Ysani Kalapalo com Eduardo Bolsonaro, ministros e a primeira-dama Michelle

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