O Estado de S. Paulo

Desenhos clássicos

- Ubiratan Brasil

O chargista José Carlos de Brito e Cunha, mais conhecido pela assinatura J. Carlos, trabalhava em mais um desenho quando, de repente, sua cabeça caiu sobre a escrivanin­ha, na redação da revista Careta. Um

AVC fatal encerrou ali uma sólida e brilhante carreira. Era 2 de outubro de 1950 e ele estava com 66 anos. “Além de ser um artista genial, J. Carlos era uma verdadeira usina de produção, deixando um enorme legado de desenhos”, observa outro craque da caricatura, Cássio Loredano, que, ao lado de Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, assina a curadoria de J. Carlos – Originais, exposição em cartaz no Instituto Moreira Salles de São Paulo.

Trata-se de uma rara oportunida­de de se (re)descobrir o trabalho de um dos mais inventivos artistas da imprensa brasileira da primeira metade do século passado – e também mais produtivo. Afinal, de 1902, quando publicou seu primeiro desenho, até sua morte, em 1950, J. Carlos, que nasceu em 1884, produziu mais de 50 mil trabalhos. Foram caricatura­s, charges, cartuns, ilustraçõe­s, letras, vinhetas, adornos, peças publicitár­ias. “Ele fazia tudo o que era possível para um artista daquela época, utilizando lápis, caneta e pincel e especialme­nte o nanquim”, explica Loredano que, desde 1995, estuda com afinco o traço do colega carioca.

A mostra conta com cerca de 300 itens, entre desenhos e publicaçõe­s. Como J. Carlos trabalhou ininterrup­tamente durante 48 anos, o visitante terá a chance de conhecer seu processo criativo, pois, ao privilegia­r os originais, muitas vezes anotados, a exposição não apenas dá conta de alguns dos temas mais recorrente­s do artista, mas também flagra o processo de criação das ilustraçõe­s, da prancheta para as páginas.

Pesquisado­res são unânimes em apontar J. Carlos como um dos primeiros representa­ntes do modernismo no Brasil, graças à leitura original que fez de estilos arquitetôn­icos como art nouveau e art déco, cujos traços geométrico­s se inspiravam em

formas e estruturas naturais – e sempre permeado por um humor elegante. “Ele transcende o universo dos desenhista­s, dos caricaturi­stas. Sua obra causa impacto até hoje, as pessoas reconhecem o traço, a estética de uma era específica, a belle époque, que ele conseguiu associar ao seu trabalho”, afirma a curadora Julia Kovensky.

Ao poder “acessar os bastidores da obra, quando visualiza os originais”, segundo o também curador Paulo Roberto Pires, o visitante vai entender o processo criativo de J. Carlos, que trabalhou para as revistas Careta, Para Todos..., FonFon! e Almanaque do TicoTico. “Vai perceber também como J. Carlos evoluiu no traço – basta ver o primeiro trabalho publicado, em 1902, uma charge que tem uma caricatura do então presidente Campos Sales e que é horrível”, pondera Loredano. Para facilitar o entendimen­to dessa evolução, a exposição do IMS foi montada em quatro seções. A primeira mostra a faceta artesanal de J. Carlos, ou seja, a criação de letras, vinhetas, rascunhos e logotipos. É possível observar, por exemplo, o preciosism­o com que ele criava capitulare­s e vinhetas para os textos literários publicados nas revistas em que ele trabalhou. “É um dos capítulos mais bonitos da exposição. Todo escritor publicava na imprensa da época, e ele fazia a roupa visual de tudo”, comenta Loredano. Em seguida, na segunda seção, desponta a sátira política brasileira, sobretudo os períodos dos governos Getúlio Vargas (19301945) e Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), retratados com belíssimas caricatura­s. Nessa ala, destaque também para o retrato do cotidiano do Rio de Janeiro, em especial o carnaval, que o desenhista retratava com riqueza de detalhes – estão ali mulheres faceiras, homens opulentos, personagen­s que descobria ao andar constantem­ente de bonde. Detalhe importante: as pessoas negras eram grosseiram­ente desenhadas, sem detalhes faciais, seguindo a cartilha da época que desprezava essa faixa da população. A terceira seção é dedicada à produção criada durante a 2.ª Guerra Mundial: os principais líderes inspiram desenhos que traduzem o pensamento antifascis­ta de J. Carlos. Finalmente, na última seção, destaca-se um aspecto pouco conhecido de seu trabalho, aquele dedicado às histórias para crianças. Como observa Loredano, são quadrinhos formalment­e ousados, publicados semanalmen­te em O Tico-Tico e também em Minha Babá, livro que se tornou raridade e no qual exercitou seu virtuosism­o. A mostra comprova, portanto, que seu desenho não envelheceu.

 ?? SALLES J. CARLOS/INSTITUTO MOREIRA ??
SALLES J. CARLOS/INSTITUTO MOREIRA

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil