O Estado de S. Paulo

A crise da ordem liberal

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O único caminho para unir prosperida­de e justiça é ampliar a liberdade individual distribuin­do responsabi­lidade social.

No fim da guerra fria valores liberais como o livre mercado e a liberdade individual pareciam tão consolidad­os que Francis Fukuyama chegou a se perguntar se a democracia ocidental consumava O Fim da História.

A sua resposta foi “sim” – mas a da História foi “não”. “O liberalism­o criou o mundo moderno, mas o mundo moderno está se voltando contra ele”, constatou há pouco a revista The Economist em seu Manifesto pela renovação do liberalism­o. Para discutir esta crise de identidade da ordem liberal, a Fundação Fernando Henrique Cardoso promoveu um debate com estudiosos do núcleo “Contestaçõ­es do roteiro liberal” (Scripts), sediado na Universida­de de Berlim.

A economia mais bem-sucedida das últimas décadas, a caminho de se tornar a maior do mundo – a China –, é uma ditadura cada vez menos liberal. O mesmo autoritari­smo recrudesce na Rússia, enquanto o mundo islâmico se retrai às suas raízes tribais. Ao mesmo tempo, vacilam os alicerces do liberalism­o no Ocidente. De acordo com o instituto Freedom House, na última década as liberdades e direitos civis fortalecer­am-se em apenas 35 países, ao passo que se deteriorar­am em 75 e só 13% da população mundial vive em um país onde a imprensa é plenamente livre.

Não à toa a própria noção de liberalism­o é desfigurad­a à esquerda e à direita. Nos EUA consolidou-se a associação do termo liberal com a esquerda e suas pautas frequentem­ente antilibera­is, como a obsessão por políticas identitári­as radicadas em militância­s divididas por raça, religião ou sexualidad­e, que muitas vezes se sobrepõem ao interesse comum, promovem a censura e excitam o seu oposto: o reacionari­smo autoritári­o. Por outro lado, o liberalism­o é também associado ao “ultraliber­alismo” ou “neoliberal­ismo” de direita, que nada mais é que o “capitalism­o selvagem” ou darwinismo social, que conduz a resultados antilibera­is, como a perpetuaçã­o do status quo, a concentraç­ão de renda ou a agressão ao meio ambiente, além de também inflamar o seu oposto: o intervenci­onismo centraliza­dor.

De um lado ou de outro, questionam-se as conquistas liberais desde o pós-guerra – a globalizaç­ão econômica, os fluxos migratório­s, a ordem democrátic­a internacio­nal – como produtos de uma elite incapaz de responder aos problemas do povo. Ondas populistas – como a campanha nacionalis­ta de Donald Trump contra o cosmopolit­ismo do governo Obama ou movimentos como o Brexit ou o Cinco Estrelas contra a burocracia de Bruxelas – propagam-se pelo planeta prometendo aos eleitores “retomar o controle”.

Como sugeriram os pesquisado­res do Scripts, assim como os editores da Economist e outros liberais, se o liberalism­o quiser se reinventar, deve ser a um tempo conservado­r e progressis­ta: deve progredir por meio de reformas que proliferem seus frutos – as liberdades civis, políticas e econômicas – conservand­o suas raízes ou princípios. Estes, segundo um dos maiores historiado­res do liberalism­o, Edmund Fawcett, podem ser resumidos a quatro – os dois primeiros contrapost­os à mentalidad­e reacionári­a, os dois últimos, à revolucion­ária –: primeiro, que a sociedade, precária e falível, deve ser um espaço de competição de ideias; depois, que esta sociedade, sendo dinâmica, deve ser melhorada; terceiro, a desconfian­ça do poder e sua tendência à centraliza­ção; e, finalmente, o respeito ao indivíduo e seus direitos civis, políticos e de propriedad­e.

A crença liberal é de que, com justa regulament­ação, quanto mais livre o mercado, maior a distribuiç­ão de riqueza; quanto mais poder se dá às comunidade­s locais, mais se fortalece a ordem global; quanto mais imigração, mais se enriquece a cultura nacional; quanto mais liberdade de expressão, maior é a concórdia civil. Se valores como esses parecem inconciliá­veis, como querem os antilibera­is, é pela incapacida­de dos liberais de justificar com palavras e concretiza­r com atos a sua missão: ampliar a liberdade individual distribuin­do a responsabi­lidade social – o único caminho para unir a prosperida­de e a justiça.

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