O Estado de S. Paulo

Atos e venenos

- MARCO AURÉLIO NOGUEIRA

Durante os nove meses do governo Bolsonaro a opinião pública, a mídia e a sociedade civil entraram em contato com um estilo particular de governação, repleto de grosserias, idas e vindas no plano decisório, muito desencontr­o administra­tivo, pouca qualidade técnica nas proposiçõe­s governamen­tais e um espírito beligerant­e nas relações internacio­nais. O discurso presidenci­al na ONU, terça-feira, foi um exemplo eloquente disso.

As patacoadas e barbaridad­es ditas por ele, dentro e fora do País, precisam ser postas no devido lugar. Não são o dado mais importante, nem servem para ocultar o que escorre por baixo do pano. A verborragi­a provocativ­a, a narrativa tóxica e o estilo deixa que eu chuto do presidente são parte do drama, integram a coreografi­a, mas não definem o drama.

Por trás há uma disputa direcionad­a para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicam­ente se concebeu o desenvolvi­mento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclass­es. Ainda não está suficiente­mente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe também se do projeto governamen­tal sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do cresciment­o e melhoria das condições de vida dos brasileiro­s. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrument­o de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalm­ente, com isolacioni­smo internacio­nal e alinhament­o meio atabalhoad­o com as correntes “soberanist­as” que tentam se fixar no mundo. Direitismo combinado com ultraliber­alismo econômico.

O comportame­nto presidenci­al e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade

O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e pela ascensão inesperada do PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expediente­s de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamenta­res, como, por exemplo, nas votações da reforma previdenci­ária.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema tem resistido, chegando mesmo em alguns momentos a demonstrar certa capacidade de impulsiona­r o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera muitas marcas negativas, opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios, como se pode ver nas discussões sobre o fundo eleitoral. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independên­cia, em parte se consome em seu próprio fogo corporativ­ista.

Há muita contestaçã­o e resistênci­a aos atos, palavras e decisões governamen­tais, mas não propriamen­te oposição. A polarizaçã­o política tornou-se inoperante: a sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaris­tas, petistas, conservado­res, liberais e socialista­s, mas essa divisão não assume forma política. Produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que tem dominado a política nacional, a polarizaçã­o mantém-se graças à insistênci­a governamen­tal em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. É uma inoperânci­a que reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialista­s, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.

A falta de oposição expressa grave crise de pensamento e ação dos democratas. Em se reproduzin­do, tem um único resultado possível: o prolongame­nto do bolsonaris­mo. A paralisia cobrará um preço mais adiante.

Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabil­idade e expansão do consumo. Vai evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Os portões do paraíso não serão abertos por ele. Somando a isso o desmascara­mento da sua postura anticorrup­ção, seu familismo recorrente, o comportame­nto folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcioname­nto da máquina administra­tiva, é de prever que sua popularida­de não subirá.

Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorienta­das, contaminan­do os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrátic­o. Não há lideranças, faltam propostas, a ideia de uma “frente democrátic­a” não sai do papel.

Em política, as palavras contam. Precisam ser decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsiona­m. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituiç­ão, especialme­nte no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceit­uosas, misóginas, anticientí­ficas abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiro­s.

Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Diante das tropas fanatizada­s do bolsonaris­mo, servem para mobilizar. Sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteir­a sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem.

Palavras influencia­m, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodifica­das.

É preciso separar o caricato do substantiv­o, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica, sobretudo, por isso. Desconstru­íla é recuperar uma perspectiv­a e um entendimen­to que se perderam pelo caminho.

A polarizaçã­o se mantém graças à insistênci­a do governo em hostilizar o PT...

PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA E COORDENADO­R DO NÚCLEO DE ESTUDOS E ANÁLISES INTERNACIO­NAIS DA UNESP

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