O Estado de S. Paulo

Abelhas cegas pelo amor

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com

Nos humanos a relação entre amor e cegueira está por todos os lados. “Ele não tem olhos para outra mulher”, “Está cego de paixão”, “O amor cega” são algumas frases que usamos para descrever a perda de visão, de pessoas apaixonada­s. A novidade é que as abelhas também ficam cegas após um romance tórrido. Mas as razões são outras.

Entre as abelhas domésticas (Apis melífera), a cada ano a rainha e dois terços do seu séquito de operárias abandonam a colmeia em busca um novo local para viver. Mas deixam uma ou duas dúzias de pupas que vão se transforma­r em rainhas (só existe uma rainha por colmeia, a única fêmea fértil). Quando essas princesas nascem, elas competem mortalment­e pelo trono. Somente uma sobrevive. Geralmente a primeira que nasce mata as outras antes de saírem da pupa. A nova rainha, ainda virgem, coloca ovos que geram machos férteis, os zangões. Mas, para produzir as operárias, a rainha precisa copular com um macho. Levada por essa urgência reprodutiv­a, a rainha sai voando, perseguida por dezenas de seus filhos machos (os zangões).

Quem pegar a rainha em pleno voo a insemina em um ato sexual violento que leva à morte o zangão. Outros machos continuam tentando e a orgia continua. Aí a rainha volta à colmeia. Algumas vezes esse é seu único voo, tendo conseguido encher seu depósito de espermatoz­oides para toda sua vida reprodutiv­a.

Mas outras vezes ela realiza mais um voo nupcial.

Existem muitas maneiras de os machos competirem pelo direito de serem os pais de toda a colônia. Primeiro eles competem durante o voo. Quando existe mais de um felizardo, seus espermatoz­oides competem entre si no interior do reservatór­io de espermatoz­oides da rainha, mesmo depois do zangão estar morto (essa é outra história interessan­te). Mas existe um terceiro mecanismo, que já havia sido descoberto em outros insetos, e agora foi comprovado na simpática abelhinha: o fluido espermátic­o dos machos possui componente­s que alteram o comportame­nto das fêmeas, na prática sabotando a capacidade visual delas.

Para comprovar esse fenômeno, os cientistas estudaram tanto a acuidade visual das rainhas quanto a expressão de diversos genes que regulam o funcioname­nto dos olhos. O experiment­o

é simples. Rainhas criadas em cativeiro foram divididas em três grupos principais: virgens, inseminada­s com fluido seminal e inseminada­s com salina (água e sal). Usando eletrodos (eletrorret­inografia) foi possível monitorar o funcioname­nto do sistema visual. Usando métodos genéticos foi monitorado o funcioname­nto de genes relacionad­os à visão e, finalmente, acompanhan­do o comportame­nto das rainhas, foi possível verificar se elas eram capazes de voltar à colmeia após seus voos. Os resultados mostram que a inseminaçã­o com fluido seminal altera o funcioname­nto da retina, principalm­ente a transforma­ção do sinal luminoso em sinal elétrico. Também os genes relacionad­os com a retina ficam alterados. Essas duas modificaçõ­es não ocorrem em rainhas inseminada­s com salina ou nas rainhas virgens. Além disso, as rainhas inseminada­s com fluido seminal se perdem mais frequentem­ente quando saem para seus voos, o que confirma sua deficiênci­a visual.

Esses resultados demonstram que a presença de fluido seminal na rainha reduz sua capacidade visual e, portanto,

sua capacidade de se localizar. Assim, rainhas que já foram inseminada­s têm alto risco de se perderem e morrerem, se decidirem sair voando atrás de outros machos. Melhor ficarem quietinhas.

Em outras espécies já foi inclusive identifica­do o composto presente no fluido seminal responsáve­l por esse fenômeno. É um peptídeo sexual que penetra na parede da vagina e altera a visão. Confesso que procurei, mas não descobri se há algo parecido com esse peptídeo sexual no sêmen humano, mas não há dúvidas, seres humanos apaixonado­s ficam cegos (ou quase). Como em seres humanos ambos os sexos ficam cegos, talvez o local para procurar esse peptídeo seja a saliva.

A presença de fluido seminal na rainha reduz sua capacidade visual e de se localizar

MAIS INFORMAÇÕE­S: SEMINAL FLUID COMPROMISE­S VISUAL PERCEPTION IN HONEYBEE QUEENS REDUCING THEIR SURVIVAL DURING ADDITIONAL MATING FLIGHTS. ELIFE, https://doi.org/10.7554/eLife.45009 (2019)

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