Maior letalidade policial faz MP-RJ abrir inquérito
Sob Witzel, houve 1.249 mortes até agosto; estudo diz que 69% dos jovens do Alemão já sofreram ou conhecem quem sofreu violência
Fred (nome fictício) voltava para casa no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, no início de 2018, quando se viu em meio a uma perseguição da polícia a suspeitos. Não conseguiu se abrigar. Um tiro de fuzil atravessou seu pulmão e o matou, assim como outros dois moradores. “O corpo foi retirado do local sem perícia”, afirma a filha de Fred – ela prefere preservar sua identidade, como medida de segurança. “Aqui, a gente cresce tendo de saber como agir em tiroteio. Acontece sempre. No caso do meu pai foi fatal. Como pode ser normal pessoas morrerem?”
O Ministério Público do Rio (MP-RJ) abriu ontem um inquérito civil para apurar o aumento dos índices de mortes provocadas por policiais. Na gestão do governador Wilson Witzel (PSC), o Estado registrou recorde no número de óbitos: foram 1.249 de janeiro a agosto. “A medida foi motivada pelo fato de o MP-RJ ter recebido representações que demandam uma reflexão responsável sobre a legalidade da política de segurança pública”, apontou o MP em nota. O governo Witzel não se manifestou.
Do órgão estadual vinha sendo cobrada postura mais proativa, como determina a sentença que condenou o Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da chacina da Nova Brasília, quando 26 jovens foram mortos entre 1994 e 1995. As mortes por policiais costumam ter investigações tocadas pela Polícia Civil. Elas raramente chegam a uma conclusão.
Em 2016, a CPI dos Autos de Resistência na Assembleia (Alerj) mostrou que 98% dos casos registrados como “autos de resistência” por policiais eram arquivados. Após a morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão, há uma semana, o MP do Rio recebeu solicitações que o levaram a abrir o inquérito. O presidente do braço estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo, se encontrou com o procurador-geral de Justiça, José Eduardo Gussem, e entregou uma representação na qual a entidade enumera erros da política de Witzel.
Receio. Moradora da comunidade onde, no fim de semana passado, Ágatha morreu, após ser baleada durante ação policial, a jovem que perdeu o pai relata que, desde a morte dele, passou a ter medo de sair de casa. Antes da tragédia, porém, sua vida já era marcada pela violência. Ela perdeu as contas, por exemplo, das vezes em que, antes de ir para a rua, colocou na bolsa uma muda de roupa. Era precaução para o caso de não poder voltar por causa de confrontos, que se repetiam.
O relato da filha de Fred é comum no cotidiano das 17.500 pessoas de 15 a 29 anos que vivem nas 13 favelas do Complexo do Alemão. O Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) ouviu 603 nos meses de março e abril para conhecer sua percepção sobre a violência. Pelo levantamento, 69% afirmam que já sofreram ou conhecem alguém que sofreu algum tipo de violência de agentes do Estado.
Para a pesquisadora Bianca Arruda, do Ibase, o número é, provavelmente, ainda maior. “Essa é uma pergunta muito sensível. Estive no campo acompanhando a pesquisa e por vezes os jovens ficavam desconfiados e preferiam não responder”, diz. A reação é considerada por ela mais um indício de violação do direito à vida segura no Alemão. E, embora o questionário da pesquisa fale genericamente em “agente de Estado”, na prática quase sempre os jovens, em suas respostas, se referem a policiais.
Violência. No topo da lista de abusos citados pelos jovens estão a violência verbal (18%) e a violência física (15%). São episódios que incluem agressões, maus-tratos e humilhações.
A pesquisa mostra ainda que 9% dos jovens moradores do Alemão relataram histórias de assassinatos e chacinas praticados por policiais ou outros agentes públicos contra um parente ou conhecido. Casos de violência sexual como estupro ou assédio fazem parte da realidade de 5% deles. “Considero resultados muito altos. São números que deveriam surpreender, mas, em se tratando de favelas, acabam apenas corroborando algo que já era esperado”, diz Bianca.
Procurada, a Polícia Militar do Rio afirmou que a “Corregedoria monitora, atua e pune todos os envolvidos em tais práticas quando identificados e comprovados os fatos”. A corporação destacou ainda, em nota, ter canais de denúncia em que o anonimato é garantido.