O Estado de S. Paulo

Nova sátira política de McEwan oferece uma inversão de Kafka

Terceiro romance do escritor britânico em três anos põe barata em corpo de primeiro-ministro

- Dwight Garner THE NEW YORK TIMES / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

“Se você pretende uma longa carreira no show business”, escreveu Elvis Costello, em Unfaithful Music & Disappeari­ng Ink, seu livro de memórias, “é necessário afastar as pessoas de tempos em tempos, de modo que elas se lembrem porque esqueceram de você”.

É muito difícil esquecer Ian McEwan. O seu novo romance satírico The Cockroach, sobre o Brexit, é o seu segundo livro neste ano e o terceiro em três anos.

The Cockroach é tão ineficaz e débil que pode afastar seus leitores em longas caravanas apocalípti­cas. O jovem McEwan, autor de romances mais do que lúgubres, o que lhe rendeu o apelido de Ian Macabro, teria preferido roer seus dedos do que escrevê-lo.

The Cockroach propõe uma versão inversa de Kafka. Uma barata desperta dentro do corpo de um homem. Este homem, por acaso, é o primeiro-ministro do Reino Unido. Seu gabinete é formado na maioria por baratas com forma humana. Esses insetos estão aqui para semear a discórdia, sob pretexto de patriotism­o, e usar frases como “sangue e solo” e a noção de tornar as coisas grandes novamente para garantir sua sobrevivên­cia. McEwan dificilmen­te é um idiota e oferece em seu novo livro mais do que alguns momentos espirituos­os.

O primeiro-ministro lembra, na sua forma anterior, ter encontrado uma “pequena montanha de excremento, ainda quente e ligeiramen­te fumegante. Em qualquer outro momento ele teria se alegrado. Ele se olha como se fosse um conhecedor. Ele sabia como viver bem”.

Nossa barata humana outrora vivia embaixo do Palácio de Westminste­r, local de reunião da Câmara dos Comuns e da Câmara dos Lordes. De modo que ela está habituada a ouvir as sabatinas do primeiro-ministro, essa excelente tradição inglesa.

Os antagonist­as políticos em The Cockroach não são os defensores da saída ou da permanênci­a na União Europeia, mas são os Clockwiser­s (que caminham no sentido horário) e os Reversalis­ts (para quem a ideia sobre o universo é o oposto do que as pessoas pensam). Os primeiros são as elites, pessoas que se importam com a razão, a ciência, a moderação. Os segundos são os populistas robustos.

Em questão não está o Brexit, mas um programa chamado “economia de fluxo reverso” que colocaria a Inglaterra em discordânc­ia com a sensatez e com seus aliados europeus.

Este romance, tão quebradiço quando o exoesquele­to de uma barata, serve como lembrete de que já surgiu boa ficção que leva em conta a violência, a perfídia e o choque da nova atitude política no Reino Unido e nos Estados Unidos.

A ideia de escrever The Cockroach, provavelme­nte, surgiu sob o chuveiro numa certa manhã, como uma boa ideia. Mais tarde, depois do café, deve ter ocorrido a McEwan que sugerir que seus oponentes são baratas poderia ser uma mancha no tapete. Um romance cômico que poderíamos usar é o de Anthony Weiner. A investigaç­ão de Weiner que levou a James Comey e a eleição de 2016 são temas que valem uma sátira. Como disse o cineasta Errol Morris há muito tempo, “quem teria imaginado que o desejo irresistív­el de um homem de fotografar seu pênis e compartilh­álo com mulheres na Internet poderia destruir a civilizaçã­o ocidental!”.

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LAUREN FLEISHMAN/THE NEW YORK TIMES Alegoria. Governo do Reino Unido formado por insetos

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