O doloroso caminho em busca da identidade
‘Brian ou Brenda?’ mostra família que cria um de seus gêmeos como menina
Os anos 1960 não foram fáceis para a família de Brian e Bruce. Quando os gêmeos nasceram, os médicos perceberam que iam precisar fazer uma cirurgia de fimose em um deles. Durante o procedimento malsucedido, o pênis do bebê, que tinha então 8 meses, foi cauterizado e a trágica história ganhou atenção na época.
Aconselhado pelo psiquiatra John Money, para quem os bebês nasceriam neutros e a criação é que definiria o gênero deles, os pais dos gêmeos decidiram tratar Brian como uma menina. E também aconselha a família a fazer uma cirurgia de redesignação sexual no menino para torná-lo uma garota.
Brian ou Brenda?, peça de Franz Keppler que estreou na sexta, 27, resgata o polêmico caso médico, no palco do Centro Cultural São Paulo.
“Não é difícil imaginar que a criança cresceu infeliz em um corpo que não é o seu.” Para Yara de Novaes, que dirige a peça ao lado de Carlos Gradim, a infância de Brenda foi acompanhada de muito horror e na sofrida adolescência ela atenta contra a própria vida. “Estamos dizendo que alguém foi criado como se fosse outra pessoa”, diz. “A família percebeu que havia tomado uma decisão que não cabia a mais ninguém, apenas a Brian.”
Em sua pesquisa, o autor lembra que a intervenção médica no corpo de Brian se combinou com a teoria do psiquiatra, sob o risco de fracassar. “Naquela época, essas pessoas eram chamadas hermafroditas, no caso de nascerem assim. O que Brian sofreu foi outro tipo de intervenção, ainda criança, sem condições de compreender os caminhos tomados.”
Com oito atores em cena, tendo a atriz trans Marcella Maia no papel de Brenda, a peça vai reconstituir o desconforto de Brian (ou seria Brenda?) no entendimento de seu corpo e seus desejos. “Ela percebe o desequilíbrio em sua identidade e tenta se matar. Os pais contam a verdade e Brenda segue em busca de seu verdadeiro eu.”
‘Monstro’. Neste ano, durante a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, estreou o espetáculo MDLSX, com uma história que revê o drama semelhante, dos chamados intersexo. Tratados antigamente por hermafroditas, os nascidos com tais características sofriam mutilações médicas em seus genitais com o objetivo de adequálos ao corpo físico. A ideia de criá-los como meninas ou meninos corria grande risco na chegada da adolescência.
Com beleza e cores lisérgicas, a atriz Silvia Calderoni conta em MDLSX as lembranças de infância e a grande lacuna ao se reconhecer distante do masculino e feminino. Monstro era a palavra mais próxima de si. Por outro lado, a grande energia da atriz em cena reivindicava um novo lugar para se existir, um sonho prestes a ser inventado.
De mãos dadas, Brenda e Silvia podem compartilhar uma dor única, que chega ao palco como algo íntimo, antes mesmo de alcançar o lado social ou político dessas identidades. “O que vemos nas ruas, na intolerância é o ódio que mata”, conta Yara. “Despertar o público para essas histórias pode nos ajudar a criar um pouco de empatia.”
No numeroso elenco, a diretora identifica essa diversidade como linguagem na encenação. “Buscamos diferentes corpos e histórias nesse elenco, do negro ao índio. Essa dissonância também flutua na trama da peça e ganha força. O teatro tem esse poder de reunir, de formar um nova família.”
Para o autor, a história quer aprofundar um debate sobre sexualidade que sofre com muitos ruídos na política. “Deixar o outro ser quem ele é faz com que todo mundo viva, e ninguém precise morrer por isso”, completa Keppler.