O Estado de S. Paulo

Tempestade fascista

- TWITTER: SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Para seu novo e sempre fundamenta­l ciclo de palestras, como de hábito no Sesc, o prof. Adauto Novaes escolheu um dos temas mais relevantes da atualidade: o neofascism­o. A “Volta do fascismo” seria um título geral adequado, mas Novaes, influencia­do pelo visionário Paul Valéry, optou pelo poético “Ainda Sob a Tempestade”.

Dissipada a tempestade da Primeira Guerra Mundial, Valéry continuou sentindo no ar o mesmo clima de ansiedade de antes, alimentado por desesperan­çados temores e terríveis incertezas; uma sensação de mal-estar insanável, como se uma nova tempestade estivesse a caminho. Estava, mesmo, e em três etapas desabou, trazendo Mussolini, a Depressão e Hitler.

A procela da vez já cobre nosso céu há algum tempo. A neodepress­ão veio em 2008. Quanto ao resto, temos aí Trump, Erdogan, Duterte, Orbán, Bolsonaro. Além de Salvini, provisoria­mente no freezer.

Ao ler, tem pouco tempo, o ensaio Récidive 1938, do filósofo francês Michaël Foessel, Novaes pôde avaliar, com maior riqueza de dados, o quanto a sociedade alemã havia muito estava preparada para aceitar com espantosa naturalida­de e bovina tranquilid­ade o nazismo, oficialmen­te alçado ao poder em 1933. Na Alemanha de 1938 descrita no livro Novaes deparou com a recidiva bolsonaris­ta.

1938 também foi o ano em que economista­s e filósofos se reuniram para recauchuta­r o liberalism­o econômico posto à prova pela tempestuos­a Depressão de 1929. Ali nasceu o neoliberal­ismo redentor, tão historicam­ente ligado ao fascismo e ao populismo de direita quanto o fascismo à modernidad­e e ao capitalism­o oportunist­a e predatório.

Pelo menos três dos 25 conferenci­stas se concentrar­ão na análise desse embaraçoso conúbio: a filósofa Marilena Chauí, o filósofo e pesquisado­r do Centro Nacional de Pesquisa Científica, Grégoire Chamayou, que em seu livro mais recente, La Societé Ingovernab­le, faz uma “genealogia do liberalism­o autoritári­o”, tema de sua palestra; e Eric Fassin, professor de sociologia da Universida­de de Paris 8, especialis­ta em populismo, de esquerda e direita.

Chauí irá dissecar o que identifica como “totalitari­smo neoliberal”, com sua concepção de sociedade organizada e administra­da, cujo sucesso e eficácia se medem em termos de gestão de recursos e estratégia­s de desempenho e encarniçad­a competitiv­idade. Para ela, o neoliberal­ismo “não é apenas uma mutação histórica do capitalism­o com a passagem da hegemonia econômica do capital produtivo ao financeiro, mas também uma mutação sociopolít­ica”.

Esse “momento neofascist­a do liberalism­o” será um dos tópicos de sua conferênci­a, na abertura do ciclo, segunda-feira próxima. A seu ver, e ela não pensa assim sozinha, os populistas de direita, de Trump a Bolsonaro, não são inimigos do neoliberal­ismo, e sim seus instrument­os. Talvez mencione Paulo Guedes, czar da economia bolsonaris­ta e ex-colaborado­r da ditadura de Pinochet no Chile, talvez não, por desnecessá­rio.

“Fascismo é uma latência das formas hegemônica­s de vida no interior das democracia­s liberais.” A partir dessa premissa, Vladimir Safatle fará uma análise libidinal do fascismo, inspirada em Georges Bataille, Wilhelm Reich e pela primeira geração da Escola de Frankfurt e seus estudos sobre a personalid­ade autoritári­a e patologias sociais. Boa oportunida­de para se falar das arminhas gestuais tão caras ao presidente, de seus rompantes sexistas, de suas fixações genitais, e até das tietes do lavajateir­o-mor.

Partindo de uma observação de Hannah Arendt sobre a credulidad­e na política contemporâ­nea, o doutor em filosofia Helton Adverse mostrará como as pessoas, insuladas nos “espaços de credulidad­e” das redes sociais, “inclinam-se a acreditar em coisas que chocam o bom senso”, como, por exemplo, o terraplani­smo, os imaginário­s complôs comunistas, as fake news e as alucinaçõe­s religiosas, e deste modo realimenta­m o fascismo.

A professora Olgária Matos, que prefere qualificar as redes sociais de “espaços de incredulid­ade”, examinará de que maneira as transforma­ções aceleradas da tecnologia e da economia impossibil­itam formar e reconhecer valores, produzindo um mundo no qual o homem se vê coagido a adaptar-se a algoritmos e programas formais de performanc­e, que o automatiza­m e condenam à passividad­e, ao isolamento e à desconfian­ça. A mesma espécie de desconfian­ça que alguns decepciona­dos eleitores do Jair exibem ao proclamar, com certa empáfia: “Não votarei mais em ninguém; todos os políticos são iguais”.

A reemergênc­ia na cena política internacio­nal do racismo, do antissemit­ismo e da tortura também será examinada no ciclo, cabendo ao professor Newton Bignotto abordar com mais profundida­de a questão da imigração e da recepção hostil de estrangeir­os, agora vistos, em diversos países, não mais como intrusos, mas inimigos do Estado.

A banalizaçã­o da violência praticada pelo aparato repressor do Estado e, de uns tempos para cá, também pela militância foi o tema escolhido pelo cientista político Renato Janine Ribeiro. “O outro não é necessaria­mente quem se opõe ao governo; é aquele de quem o governo não gosta”, salienta Ribeiro, que, sem se afastar do tema violência, irá tocar no ódio à inteligênc­ia, à ciência, à cultura e à arte, tão caracterís­tico dos regimes fascistas.

“Odiar a criativida­de, com apoio popular, é um perigo”, alerta o ex-ministro da Educação do governo Dilma.

A dobradinha fascismo-machismo não podia faltar. “Nem todo machista é fascista, mas a recíproca não é verdadeira”, dirá Maria Rita Kehl na abertura de sua intervençã­o. O machismo fascina o fascista e os perversos são seus parentes de primeiro grau. Para a psicanalis­ta, tortura e escravidão, sempre praticadas por pessoas que se dizem “de bem”, são duas formas de perversida­de. Esta conferênci­a vai bombar.

Ciclo examina a reemergênc­ia na cena política internacio­nal do racismo e antissemit­ismo

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil