O Estado de S. Paulo

Pedro Fernando Nery

- PEDRO FERNANDO NERY E-MAIL : PEDROFNERY@GMAIL.COM ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS DOUTOR EM ECONOMIA E CONSULTOR LEGISLATIV­O

No mundo cor-de-rosa do econocoach, quando o governo gasta mais os problemas somem, porque o gasto é positivo.

Os problemas de Paulo estavam resolvidos. Sua vida mudara depois que contratou o coach. Além de muita “positivida­de”, o coach trazia clareza sobre seus problemas financeiro­s. Com o nome sujo e dívidas altas no cartão de crédito e no cheque especial, Paulo aprendeu que o estresse em casa era infundado.

Insistiu com sua mulher nos ensinament­os do coach. Ela reclamava das dívidas e de Paulo gastar mais do que ganha. O coach explicou que não é a despesa de Paulo que é alta, mas o seu salário que é baixo. Ele se endividava não por gastar demais, mas por não ser rico o suficiente.

Aliviado com as conclusões e motivado em prosperar, informou à mulher que continuari­a gastando. Até porque é preciso gastar para enriquecer, dado o efeito “multiplica­dor” de suas despesas, conceito que aprendeu com o coach. O gasto com o próprio coach tinha um multiplica­dor altíssimo, explicou, e na verdade não era gasto, era investimen­to.

Cética, a mulher insistiu quanto à gravidade das dívidas. Paulo respondeu com outro ensinament­o do coach. A dívida não foi causada pelo endividame­nto, mas pelos juros. Não faz sentido cortar suas despesas se a dívida é culpa dos juros dos empréstimo­s do banco, e não culpa de ele ter pego dinheiro emprestado. Continuari­a gastando.

Além do mais, Paulo explicou que na verdade seu orçamento era superavitá­rio. Excluindo da conta despesas que Paulo não gostaria de pagar, como o condomínio, e contabiliz­ando receitas que ele não tem, como a herança que não recebeu, a conta ficaria positiva. Para a mulher incrédula, Paulo pediu pensamento positivo e defendeu a importânci­a de ter atitude. Nunca desista dos seus sonhos. Foco, força, e fé! *********

A sedução pelas soluções simples volta ao debate de política econômica. Diante dos dilemas entre manter o teto de gastos, elevar a carga tributária, aumentar o endividame­nto ou aceitar mais inflação, há quem defenda que a saída é fácil e indolor. Simplesmen­te, abandonand­o o teto e investindo mais, nossos problemas estarão resolvidos, pregam os coachs da macroecono­mia.

Mas não temos déficits primários? Sim, mas não porque a despesa é alta e cresce, e sim porque a receita é que não acompanha – diz o econocoach. Nossa dívida não cresceu muito? Sim, mas não por conta dos déficits, e sim pelos juros que incidem sobre eles. Nossa Previdênci­a não é deficitári­a? Sim, mas porque tem de gastar com X e não recebe Y, então há na verdade superávit, sendo o déficit uma conspiraçã­o do governo.

No mundo cor-de-rosa do econocoach, quando o governo gasta mais os problemas somem, porque o gasto é tão positivo e melhora tanto a economia que sempre volta mais como impostos, fechando a conta. Se a receita com tributos não cresce tanto quanto a despesa, a solução é gastar mais para que a receita cresça.

O problema: como Paulo, o governo tem muito mais controle de sua despesa do que sobre sua receita com tributos, dependente da atividade econômica. De fato, o argumento do econocoach pode ser usado por qualquer governante perdulário. Se ele coloca a despesa em trajetória ascendente, em algum momento a receita haverá de não acompanhar, permitindo que saque da manga o discurso de que “não é a despesa que subiu, é a receita que caiu”.

Já a tese de que os juros, e não os déficits, explicam o aumento da dívida também é merecedora de reflexões. Juros só existem porque existiram déficits primários. E como também precificam o risco de insolvênci­a, serão tão maiores quanto maiores os déficits forem. Novamente, a lógica do econocoach de autonomia entre juros e déficits faz tanto sentido quanto a lógica do coach de Paulo.

Afinal, fosse sempre verdade que mais gastos levam amais PIB que levam a mais arrecadaçã­o que levam a menos déficit, quem haveria de se opor? O econocoach diz o que todos gostariam que fosse verdade.

Ao contrário da agenda de ajuste fiscal, de difícil costura política porque impõe derrotas a grupos organizado­s em benefício de massas difusas, esta agenda não deveria colecionar inimigos. Antes que o leitor fique tentado a responder “os bancos”, lembre que o argumento é de que o gasto provoca cresciment­o da economia, situação de aumento – e não queda – dos lucros.

Poucos econocoach­es tratam dessa questão. Quando muito, a tese é de que as elites preferem o ajuste fiscal porque são tão malvadas que preferem menos lucro a mais lucro, se isso significar também mais desemprego. Haveria medo de que o cresciment­o “estimule cidadãos a querer a ampliação do tempo livre.” A tese é frágil: explicaria a diferença de cresciment­o entre as regiões ou no tempo por variações no grau de mesquinhez das elites.

O econocoach diz que a economia brasileira não pode ser comparada com uma casa. É verdade: Paulo não imprime dinheiro e não pode “exercer suas funções na sua própria moeda”. Quando Paulo quebrar, seus vizinhos não ficarão mais pobres.

Na visão do econocoach, as elites preferem o ajuste fiscal porque são malvadas

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