O Estado de S. Paulo

Desbragada judicializ­ação

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No Estado Democrátic­o de Direito, cada Poder tem uma esfera específica de atuação. Nessa distribuiç­ão de competênci­as, as decisões políticas cabem a quem foi eleito pelo voto popular. Por exemplo, quem legisla, definindo as regras gerais que organizam e regulam a sociedade, é o Poder Legislador. E quem governa, definindo prioridade­s, políticas e projetos, é o Poder Executivo. Esse modo de funcioname­nto decorre do princípio de que todo o poder emana do povo. Só tem poder político quem recebeu votos.

No entanto, este princípio fundamenta­l da democracia vem sofrendo ataques por parte de partidos e políticos da oposição. Reportagem do Estado mostrou vertiginos­o aumento da judicializ­ação de assuntos políticos em 2019. Parte da oposição tem recorrido sistematic­amente ao Supremo Tribunal Federal (STF) na tentativa de reverter derrotas sofridas no Congresso, bem como de sustar medidas adotadas pelo Palácio do Planalto.

Nos primeiros nove meses do governo de Jair Bolsonaro, foram protocolad­as 29 Ações Diretas de Inconstitu­cionalidad­e (Adins) e 16 Arguições de Descumprim­ento de Preceito Fundamenta­l (ADPFs), num total de 45 ações contestand­o leis e atos normativos. A título de comparação, houve 19 ações desse tipo no mesmo período do governo de Michel Temer.

Nos primeiros nove meses de 2003, primeiro ano do governo de Lula da Silva, foram propostas cinco ações, entre Adins e ADPFs. No mesmo período do segundo mandato de Lula, 18. Nos governos de Dilma Rousseff, foram 7 e 11, respectiva­mente.

Os números de ações por partido manifestam clara desproporç­ão entre representa­ção popular e acionament­o do Judiciário. A Rede, que elegeu apenas uma deputada federal em 2018 e tem três senadores, foi a recordista de ações no Supremo. A legenda protocolou 11 processos contra atos do Legislativ­o e do Executivo no STF. “Quem não tem voto judicializ­a”, reconheceu o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE). O PDT, segundo partido que mais acionou o Judiciário, distribuiu seis ações no STF em 2019. Com 27 deputados federais, é a 11.ª legenda em número de cadeiras na Câmara e tem 4 senadores.

Entidades de classe e a Procurador­ia-Geral da República (PGR) também têm contribuíd­o para a judicializ­ação de assuntos políticos. Segundo levantamen­to do Estado, nos primeiros nove meses de 2019, as entidades de classe protocolar­am no Supremo 12 ações contestand­o leis e atos normativos e a PGR, seis.

Faz parte do jogo democrátic­o a possibilid­ade de acionar o STF a respeito da constituci­onalidade de leis e atos normativos. E, entre os que têm competênci­a para propor esse tipo de ação, a Constituiç­ão de 1988 lista os partidos políticos com representa­ção no Congresso Nacional, as confederaç­ões sindicais e entidades de classe de âmbito nacional e o Procurador­Geral da República. No entanto, a possibilid­ade de bater às portas do STF não representa autorizaçã­o para transferir para o Judiciário a decisão de questões políticas. E é isso precisamen­te o que se vê na expressiva quantidade de Adins e ADPFs protocolad­as em 2019.

O embate que os partidos políticos devem travar é no Congresso, e não na Justiça. Logicament­e, essa atuação no Legislativ­o exige negociação e coordenaçã­o com as outras legendas, o que muitas vezes não é uma tarefa fácil. Mas é este precisamen­te o papel da política – por meio do estudo, do diálogo, do debate e das alianças, os partidos devem ser capazes de formar as maiorias e os consensos possíveis sobre os temas e respectiva­s propostas.

Fere o princípio democrátic­o o partido que abdica da articulaçã­o política para se dedicar a fazer política no Judiciário. Cabe ao Judiciário rejeitar peremptori­amente esse tipo de manobra. Como guardião da Constituiç­ão, o Supremo tem o dever de zelar pela separação dos Poderes e fazer valer, de fato e de direito, a democracia representa­tiva. Pobre democracia é aquela cuja decisão política, em vez de ser tomada por quem recebeu voto popular, é transferid­a para o plenário dos tribunais.

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