O Estado de S. Paulo

Menina-Maravilha

- ANA CARLA ABRÃO E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Amorte de uma criança já é, isoladamen­te, algo de impossível compreensã­o. Uma morte trágica como a da menina Ágatha Félix, baleada no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro quando voltava para casa é, além de doloroso, injustific­ável e inaceitáve­l. Mas à dor infinita da sua morte se misturam também questões sociais que precisam ser encaradas no Brasil se quisermos viver num país melhor. Questões que estão, invariavel­mente, relacionad­as à falência das nossas políticas públicas.

Ágatha, como tantas outras crianças, vivia numa das favelas que convive lado a lado com o cresciment­o e o desenvolvi­mento das nossas grandes metrópoles. No caso dela era o Complexo do Alemão, bairro que abriga um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro e que ostenta o pior Índice de Desenvolvi­mento Humano (IDH) do município. O Alemão é considerad­o uma das áreas mais violentas da cidade, apesar da atuação da Unidade de Polícia Pacificado­ra (UPP), presente no bairro desde 2011. Mas a verdade é que ali o Estado não existe. A lei é outra, as lideranças e as regras são definidas à margem das instituiçõ­es, dos direitos individuai­s, da liberdade e do alcance do Estado. Assim como surgiu desordenad­amente, movida pela necessidad­e, a comunidade abriga pessoas que tentam diariament­e sobreviver assim, numa terra com outras leis.

A ausência do Estado se mostra menos na ocupação irregular e desordenad­a e muito mais na falta de infraestru­tura, no esgoto a céu aberto, nas condições insalubres de tantos barracos e no domínio pelo tráfico – apesar dos oito anos de presença da UPP. Mas há outras ausências que estão na raiz de tudo que se vê e que culminam em Agatha, a menina maravilha que perdeu seu futuro com uma bala nas costas.

Educação e saúde públicas estão na base do que se consideram oportunida­des e dignidade humanas. Políticas públicas mais eficazes que gerem acesso e qualidade nessas áreas são o início do processo de recuperaçã­o da capacidade do Estado de melhorar a vida das pessoas. Mas essas políticas precisam estar acompanhad­as de investimen­tos em saneamento, escolas e creches, programas de prevenção de doenças, nutrição, atividades socioeduca­tivas, etc. Ações que não acontecem de forma correta sem que haja planejamen­to estratégic­o, avaliação de impacto, acompanham­ento de resultados e, claro, alocação eficiente de recursos. A falência do Estado é a causa e não a consequênc­ia das nossas incapacida­des. É graças à nossa ineficiênc­ia em formular, implantar e avaliar políticas públicas eficazes que a nossa sociedade sofre.

Mas no campo da segurança pública há uma outra vertente que precisa avançar e ser tratada como prioridade. Trata-se da disseminaç­ão no uso de dados, evidências, informação e tecnologia de forma a permitir que intervençõ­es diretas ampliem a eficácia das ações policiais. Há que se fugir dos extremos que por um lado defendem e protegem o infrator como fruto das nossas mazelas sociais e por outro validam os excessos das polícias como forma de resolver a atual situação de descontrol­e. Afinal, leis existem e devem ser respeitada­s. Se não são adequadas, devem ser alteradas. Mas não podemos fugir ao cumpriment­o delas, sob risco de migrarmos de uma condição de violência e inseguranç­a para outra igualmente perversa.

Há, portanto, que se entender o que funciona, o que tem impacto concreto, o que deu certo aqui e lá fora. Temos investido recursos crescentes nas áreas de segurança, mas os resultados são tímidos, quando não retrocesso­s. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o valor total dos gastos com segurança pública atingiram R$ 91 bilhões em 2018, um cresciment­o de quase 4% em relação a 2017 e o equivalent­e a 1,34% do PIB. Embora tenhamos colhido recuos nos números de mortes violentas intenciona­is, com uma redução de 10,8% em 2018, não há como comemorar uma taxa de 27,5 por 100 mil habitantes. E não há como tolerar mortes, em particular de crianças, vítimas inocentes de nosso descalabro social.

Nas fotos divulgadas, Ágatha irradiava aquela energia e esperança que só as crianças são capazes de demonstrar, talvez por não entenderem a dureza da vida que lhes espera fora da sua inocência. Ágatha ia à escola, ao ballet, ao inglês. Uma conquista de pais que entenderam a importânci­a de garantir à filha oportunida­des que por nascença lhes foram negadas. Uma MeninaMara­vilha a menos, num país que sangra todos os dias graças a um Estado incapaz de promover justiça social.

Não há como tolerar mortes de crianças vítimas de nosso descalabro social

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