O Estado de S. Paulo

A dose do remédio

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Além de ameaças diárias à nossa privacidad­e, estamos expostos a uma cacofonia crescente no ambiente virtual, e isso nos causa incômodo. É compreensí­vel e adequado querer livrar-se de um incômodo; o risco é agir precipitad­amente e acabar gerando um mal pior. Vale a regra enunciada por Jon Postel: para vivermos na Internet, devemos ser liberais no que aceitamos e conservado­res no que fazemos. Ou seja, é inevitável que tenhamos que passar por situações que nos desagradam, mas devemos evitar gerá-las aos demais. E resta tentar amenizar o quadro.

Para abordar alguns desses abusos, é importante distinguir entre “Internet” e as construçõe­s feitas sobre ela. A estrutura essencial da Internet é o conjunto de protocolos e equipament­os sobre os quais esse mundo imaterial e sem fronteiras opera. “Internet” não são as redes sociais, nem os aplicativo­s, nem mesmo os sítios que visitamos, mas é, sim, quem tornou viáveis essas construçõe­s. Foi a eletricida­de, por exemplo, que permitiu motores elétricos, mas não parece sensato culpá-la quando alguém é eletrocuta­do, ou quando computador­es elétricos ajudam a violar nossa privacidad­e. Isso, entretanto, não significa que não sejam necessário­s esforços contínuos para tornar essa plataforma mais sólida e segura. É uma preocupaçã­o constante dos grupos técnicos a criação de protocolos que incorporem criptograf­ia, processos que possam ser certificad­os por assinatura­s digitais. Formas de tornar a rede mais resiliente a abusos dos mal-intenciona­dos, cujo número só faz crescer...

Quem eventualme­nte espalha desinforma­ção, dissemina medo, estigmatiz­a indivíduos, ameaça nossa segurança são as ações que ocorrem nas construçõe­s sobre a Internet. Esse é objeto das preocupaçõ­es comezinhas. Afinal, não nos incomoda tanto o comportame­nto da infraestru­tura Internet, quanto o do que foi criado sobre ela. Enquanto todos dão tratos à bola de como melhorar esse cenário, surge um novo e inesperado movimento: grandes empresas da área pedem aos governos “mais regulação”! Eis aí uma pílula dourada que devemos examinar com muito cuidado antes de decidir se a engolimos. Claro que uma empresa, como um clube, pode ter regras próprias de comportame­nto adequado para seus associados, mas isso é bem diferente de ela pedir a um governo que a regule, afetando por extensão o comportame­nto de todas as demais iniciativa­s. Fica para uma próxima um exame com mais detalhes do que se esconde sob essa aparente antinomia: um pedido de regulação sobre a eventual autorregul­ação.

Regulação é mecanismo importante para se garantir um jogo limpo no mercado. É um remédio para males que advêm de desequilíb­rios estruturai­s. Por exemplo, a lei de proteção de dados individuai­s devolve-nos o controle de nossas informaçõe­s, reequilibr­ando o poder. Como todo remédio, regulação deve ser usada em situações específica­s e em doses adequadas. Seu excesso ou sua falta são danosos. No grego, remédio e veneno são a mesma palavra. Em português, “droga” pode ser remédio ou veneno. À época do descobrime­nto do Brasil, Paracelso, um médico e alquimista suíço, alertava: “O que separa remédio de veneno é apenas a dose”.

Regulação é mecanismo importante para se garantir um jogo limpo no mercado

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