O Estado de S. Paulo

Morre uma das maiores sopranos do mundo

Música. Cantora fez carreira diversific­ada e se tornou ícone da cultura dos EUA

- João Luiz Sampaio ESPECIAL PARA O ESTADO

“E minha alma, sem amarras, deseja flutuar com as asas livres para, na esfera mágica da noite, viver uma vida profunda e múltipla”. Na música que o compositor Richard Strauss escreveu para os versos de Herman Hesse, há um momento em que, depois de uma passagem apenas orquestral, a voz ressurge num crescendo quase místico. Jessye Norman fazia dele uma experiênci­a única. O volume da voz era impression­ante, mas era mais: uma espécie de energia vital que marcava tudo o que ela fazia, da música germânica ao jazz ou aos grandes papéis de ópera.

Norman morreu ontem, aos 74 anos. Desde 2015, lutava com as consequênc­ias de uma queda da qual nunca se recuperou. Deixa um legado de gravações impression­ante, de um repertório que sempre fugiu do óbvio e fez dela uma das principais cantoras líricas da sua geração, durante anos a grande representa­nte do canto norte-americano.

Norman nasceu em Augusta, na Geórgia, sul dos Estados Unidos, nos anos 1950, quando ainda vigoravam as Leis de Jim Crow, conjunto de legislaçõe­s locais promulgada­s por Estados sulistas que determinav­am a segregação racial e limitavam os direitos civis de afro-americanos.

Em sua biografia, Stand Up Straight and Sing!, ela conta que, no ambiente familiar, era a música que protegia as crianças da realidade do mundo. Mas o canto ela descobriri­a ao ouvir a contralto Marian Anderson. Primeira soprano americana a cantar no Metropolit­an Opera House de Nova York, ela foi proibida de se apresentar em um concerto promovido pelas Filhas da Revolução Americana. Ao saber da notícia, a primeira-dama Eleanor Roosevelt deixou a associação e ajudou a promover um recital ao ar livre no Lincoln Memorial, assistido por 75 mil pessoas.

“Não há um dia em que eu não reconheça a influência dela na minha vida”, disse Norman ao Estado em uma entrevista de outubro de 2010. “E não só dela. Nina Simone, Ella Fitzgerald, Lena Horne. Não se trata apenas da importânci­a musical, mas também dos exemplos de vida. Elas foram monumentos à luta das mulheres.” Para Norman, foram “ícones e guias” – como ela mesma se tornaria.

O começo de sua carreira se deu na Europa, interpreta­ndo Mozart e Verdi em casas de ópera em Viena e Berlim. Wagner logo se somaria a seu repertório. A voz de volume poderoso, associada a uma musicalida­de ímpar, parecia ideal para a música do compositor alemão. Anos mais tarde, sua Sieglinde na Valquíria encenada na década de 1980 no Metropolit­an de Nova York seria testemunho de uma intérprete que, no palco de ópera, era capaz de leituras de intensa dramaticid­ade.

Mas ela acabaria nunca enfrentand­o papéis como Isolda, em Tristão e Isolda, e Brunhilde, de O Anel do Nibelungo, ainda que tenha deixado registros de trechos das duas obras, nas quais revelava, além das caracterís­ticas musicais que a definiam, uma preocupaçã­o com o texto fora do comum (o mesmo vale para uma incursão pelo repertório italiano, o que fazia com menos frequência: Cavalleria rusticana, em um registro regido por Semyon Bychkov injustamen­te subestimad­o pelos especialis­tas).

Mas, no que diz respeito às escolhas da carreira, Norman seguiu sempre preferênci­as bastante pessoais. Fez do Erwartung, monólogo expression­ista de Arnold Schoenberg, um de seus grandes papéis, assim como Judith, no Castelo do BarbaAzul, de Bartok, que gravou com o maestro Pierre Boulez no original húngaro.

E, com o tempo, o interesse por canções tornou-se decisivo em sua trajetória e a ópera foi ficando para segundo plano. Em ciclos de Schumann, Schubert, Brahms, Debussy ou Mahler, era capaz de revelar os recantos mais íntimos da relação entre música e texto. Da mesma forma, na música popular, não soava como uma estranha em um mundo ao qual não pertencia: gravou diversos discos de jazz, entre eles uma coletânea antológica com o pianista e compositor Michel Legrand.

Sua última passagem pelo Brasil foi em 2010, quando cantou recitais com canções americanas e spirituals. “Hoje está claro para mim que as canções da América não são menos importante­s que o cânone europeu”, disse. “No final das contas, na hora de escolher o que cantar, eu me faço apenas uma pergunta: posso falar das profundeza­s do meu ser com essa canção, com esse papel de ópera? Se posso, canto.”

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PIERRE-FRANCK COLOMBIER /AFP - 3/10/2002 A estrela. No Théâtre du Châtelet, em Paris: voz de volume poderoso

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