‘Lela & Cia’ retrata episódios de violência contra a mulher
Teatro. Com texto da britânica Cordelia Lynn, a atriz Malu Bierrenbach precisa superar coro que quer silenciar personagem
Quando a peça Entre estreou no primeiro semestre deste ano, o grupo Barracão Cultural demonstrou um exemplo de que o teatro pode ampliar os sentidos no que diz respeito ao debate de assuntos como violência contra a mulher. Diferentemente de uma cobertura jornalística, é do interesse do palco alcançar um outro tipo de comunicação com a plateia, coisa que a força do protesto nem sempre alcança.
Nessa mesma vereda vai o espetáculo Lela & Cia, projeto idealizado pela atriz Malu Bierrenbach com texto da autora britânica Cordelia Lynn. “Ela se inspirou em uma história real. No caso de uma mulher que sofreu vários tipos de violência”, explica a atriz.
Na concepção de um ambiente ordinário, a mulher interpretada por Malu narra os episódios de sua vida – quase – comum. Entre os móveis da sala e as paisagens nas redondezas da casa, a personagem descobrese em meio à interferência masculina. Sua infância rodeada por homens e os conflitos surgidos vão acompanhar a vida da personagem, uma vida de dor. “São muitos nomes e lugares. A peça vai retratando diversos momentos em que Lela passa por constrangimento e até violência”, conta a atriz.
No espetáculo Entre, do Barracão Cultural, a maneira de narrar tais intervenções masculinas estava ligada à concepção da cenografia, algo que se assemelha na encenação de Lela & Cia, dirigida por Alvise Camozzi.
A presença da personagem no centro da trama não garante que ela terá a última palavra, ou pelo menos a chance de dizer uma frase até o final. Na montagem, Camozzi espalha diversas caixas de som pelo palco por onde vão ressoar vozes masculinas.
Em uma cena, acompanhada em ensaio na Oficina Cultural Oswald de Andrade, Lela lembra a infância e o namorado da irmã, um rapaz interessado em lhe fornecer experiências sexuais. “É melhor ela aprender dentro de casa, com alguém que a conhece, do que aprender com homens lá fora, que não a respeitariam como eu, um parente.” Em seguida, com a garota sentada em seu colo, o rapaz oferece um pirulito e pede que ela coma o doce.
O tom do texto pode chocar por sua franqueza e confirmar a natureza predatória dos homens. Nessa cena em especial, a frase é dita por Conrado Caputo, ator que divide a cena com Malu enquanto manipula e muda de lugar as caixas.
Para o diretor, a peça abre a dor de uma mulher para os tempos atuais. O fato de os episódios se repetirem contribui para que muitos deles passem despercebidos. “As estatísticas só dão conta de denunciar casos revelados. O que acontece com os tantos outros silenciados?”, questiona o diretor.
Quando fala de repetição, o diretor também aponta que os personagens masculinos da peça carregam comportamento semelhante. Caputo repete o mesmo tom nas falas apesar de encarnar diferentes homens que passaram pela vida de Lela. “Percebemos que se trata de um cultura violenta, que cultiva ódio e se multiplica. Esses homens chegam a acreditar que estão sendo paquerados”, diz o diretor.
Para compor a reação de Lela diante dos acontecimentos, a encenação acrescentou à personagem uma habilidade criativa, talvez como força de resistência aos quadros violentos. “Ao fim de cada história, Lela volta a seu trabalho de escultura, confiando em um caminho de amadurecer e combater tamanha dor”, completa Malu.