Pérolas regionais
Ia tranquilo o nosso papo – e eis que de repente um berreiro, na outra ponta da linha, passou um rolo sobre a voz do meu amigo. Coisa de dar susto.
– Normal – ele riu, e explicou que se tratava apenas de um anúncio fúnebre nas ruas da cidade onde vive.
Como assim?, reagi: com aquele exagero de decibéis, não parecia anúncio, parecia a morte em pessoa, excepcionalmente munida de alfanje em forma de ondas sonoras.
Que nada, voltou ele a rir, enquanto o barulho ia diminuindo até se apagar, e explicou que se trata de algo corriqueiro no lugar, uma cidade de porte médio no interior do Piauí. Ninguém, ali, se espanta ou se escandaliza quando o carro verdeclaro, provido de alto-falante, se põe a percorrer pachorrentamente as ruas para comunicar aos munícipes que fulano ou fulana já não está entre eles, e convidar para velório e sepultamento.
Forasteiros, porém, aí incluídos os telefônicos, como este cronista, deixam cair o queixo, seja de pasmo, aflição ou riso, quando não de tudo isto misturado.
Algum tempo atrás, de passagem pela cidade, um repórter vindo do Sudeste farejou matéria pitoresca, e não teve dúvida: contratou A voz do povo – como é conhecido o cidadão que acumula as funções de motorista e de locutor funéreo itinerante – para anunciar a morte dele mesmo, jornalista, e convidar para o velório, a se realizar a milhares de quilômetros dali, na imaginária Rua dos Bobos, s/n.º, em São Paulo.
A bizarria do convite fez com que um bocado de gente saísse à rua para se inteirar do acontecimento. Esclarecida a história pelo próprio repórter, houve quem, ferido em seus brios municipais, desse um troco no abusado: o mais lamentável nessa história, trovejou o camarada, é a notícia da sua morte não ser verdadeira. E acrescentou: além de tudo, o suposto defunto demonstrou desconhecer o fato de que velório, para muita gente da região, é pretexto para festa, não para choradeira.
Surpresa, entre a população local, só no dia em que A Voz do Povo silenciar de vez, por motivo de falecimento. Ainda em boa forma, mas no batente faz um tempo, para mais de 30 anos, terá ele, desprovido de filhos e sobrinhos, tido o cuidado de engatilhar um sucessor? Com os preços pela hora da morte, dificilmente faltará quem ceda à tentação de um ofício manso capaz de assegurar uns 300 reais por cinco ou seis horas de boleia, num município onde o número de óbitos, louvado seja Deus, só tem feito aumentar.
E se ainda assim ninguém se habilitar?, pergunta o espírito de porco que vos fala. Há na cidade, informa o meu amigo, quem imagine que, nesse caso, o carro verde, de tão afeito à rotina mortuária, passará a deslizar pelas ruas, alta madrugada, sem vivalma ao volante, a repetir, sem mais, o nome do finado dono.
Quanto ao cronista, por fim, este deve confessar que experimentou uma ponta de decepção – e relatou a seu amigo uma experiência de natureza semelhante, vivida na juventude e agora suplantada por algo mais sensacional: certa manhã, tendo dormido com o rádio ligado, acordou com a notícia do falecimento de um xará – nome e sobrenome. Mórbido, ele por pouco não compareceu a seu próprio velório. Guarda ainda, recortado de um jornal, o convite para a missa de sétimo dia. E mais adiante, para ilustrar matéria do Jornal do Brasil sobre gente que teve problemas com homônimos, topou posar para fotos ao lado de seu túmulo, no cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte – imagens coloridas que anos depois o Programa do Jô haveria de mostrar num telão.
Mas nada disso, acha o exibido, se compara a ter o seu falecimento, real ou fictício, anunciado em alto-falante, ainda que nas ruas de uma cidade de porte médio.
Bagagem mineira
Quando vou a Minas, trato de trazer na bagagem algo além de queijo e goiabada do Mercado Central. Aqui, o saldo da viagem mais recente – a começar por esta, contada pela Dagmar Braga, poeta refinada e gente mais ainda:
Do alto da escada, Dalmo retoca a pintura de uma casa, quando vê passar uma mulher com uma trouxa de roupa na cabeça:
– ... taaarde!... – saúda ele.
– Boooa...
– Sumida, comadre.
– É o tempo, seu Dalmo.
– E os moleque?
– Firme e forte.
– Tô vendo que a senhora também. – Levar a vida, né, seu Dalmo? – Mas... e essa barriga? O compadre não morreu, faz ano e mês?
– Isso mesmo, seu Dalmo. Quem morreu foi ele.
*
O rapaz leva a moça à casa das tias, para apresentá-la e contar que vai casar.
Uma das velhas, surda de fazer inveja a uma porta, não tira os olhos da noiva encabulada. De repente, esconde a cara atrás de uma revista e sussurra alto, altíssimo, para a irmã: – Aparecida, ela é horrorosa!
*
Mãe e avó, já entrada nos 70 anos, a cozinheira Rosa era o sossego em pessoa. Incapaz de fazer mal a um mosquitinho, atestava a patroa, minha amiga Linda.
Até que um dia, estando a Rosa à beira do fogão, veio uma mexeriqueira das vizinhanças lhe contar que o marido dela, o Joaquim, andava, e já fazia tempo, às voltas com uma fulana do bairro onde moravam.
Sem dizer palavra, Rosa ainda mexeu na panela de feijão por alguns minutos, olhos levantados para o teto, antes de desligar o fogo, limpar as mãos no pano de prato, tirar o avental e se mandar para a rua, munida de um facão.
De noitinha se soube que a boa senhora tinha marchado para casa e ali flagrado, na sua cama!, o marido e a tal fulana – da qual deu cabo com a economia de facadas de quem desde mocinha se habituara a fatiar carne suína. Agora lá estava atrás das grades, na delegacia de cidade, aonde a patroa, ainda incrédula, foi ter com ela.
– Que maluquice você foi fazer, Rosa!
– Eééé, dona Linda...
– E agora, Rosa, como é que vai ser?
Sentada no fundo da cela, a criatura pôs-se a balançar a cabeça para frente e para trás, sem se abalar:
– Éééé, dona Linda... Pobrema!
Historinhas colhidas no Piauí, por telefone, e, de corpo presente, em Minas Gerais