O Estado de S. Paulo

A reação das corporaçõe­s

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A Lei do Abuso retira a impunidade de quem abusa dolosament­e da autoridade. Mais constituci­onal, impossível.

Bastou o Congresso derrubar 18 dos 33 vetos referentes à Lei do Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19) para que se irrompesse a reação das corporaçõe­s contra a nova lei. Menos de uma semana depois de o Congresso ter restaurado artigos importante­s, que criminaliz­am o exercício abusivo da autoridade, protegendo, portanto, garantias e liberdades fundamenta­is dos cidadãos, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal (Anafisco) e a Associação dos Magistrado­s Brasileiro­s (AMB) protocolar­am no Supremo Tribunal Federal (STF) duas Ações Diretas de Inconstitu­cionalidad­e contra a Lei 13.869/19.

A ação da Anafisco insurgese contra três artigos da nova lei que, no seu entender, restringir­iam o exercício do cargo de auditor fiscal. Tal afirmação revela a confusão que a entidade faz entre exercício do cargo e abuso de poder. Por exemplo, a Anafisco diz que o art. 29 é inconstitu­cional. Ele prevê detenção de seis meses a dois anos a quem “prestar informação falsa sobre procedimen­to judicial, policial, fiscal ou administra­tivo com o fim de prejudicar interesse de investigad­o”. Ora, como pode fazer parte do exercício da função pública prestar informação falsa com o fim de prejudicar a pessoa investigad­a? Se é essa a liberdade de atuação que desejam os auditores, muito necessária é a Lei do Abuso de Autoridade.

Mais ampla, a ação proposta pela AMB dirige-se contra 16 dispositiv­os da Lei 13.869/19. Segundo a associação, a nova lei atentaria contra a independên­cia judicial. Ora, o texto legal é cristalino no sentido de que “a divergênci­a na interpreta­ção de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”.

A Lei 13.869/19 não veio restringir a liberdade de interpreta­ção dos juízes na hora de aplicar o Direito. O escopo da nova lei é punir um específico modo de exercer o cargo público: a atuação dolosa contra a lei “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. A Lei 13.869/19 veio, assim, reafirmar o Estado Democrátic­o de Direito, onde o poder deve ser exercido dentro dos estritos limites legais. Não cabe impunidade a quem utiliza dolosa, ilegal e abusivamen­te o poder do cargo público para interesse pessoal.

Insurgindo-se contra a possibilid­ade de criminaliz­ação da conduta abusiva de magistrado­s, a AMB alega que a nova lei tipifica “condutas cuja potenciali­dade lesiva é mínima. (...) O abuso há de ser corrigido em cada processo, por meio de recursos próprios e adequados e, excepciona­lmente, por meio de sanção disciplina­r administra­tiva”. Há aqui uma grande distorção, que talvez seja a razão de tantas incompreen­sões a respeito da nova lei.

Ao contrário do que diz a AMB, a conduta abusiva de magistrado­s, bem como de outras autoridade­s, é sumamente lesiva. Por exemplo, uma prisão manifestam­ente ilegal, decretada com a finalidade específica de prejudicar uma pessoa, provoca danos irreparáve­is. Postular que uma conduta de tal gravidade não deva receber sanção penal – no máximo, uma sanção administra­tiva – é menospreza­r o valor da liberdade.

Como bem afirma a AMB, o Direito Penal deve estar restrito à defesa dos bens jurídicos mais relevantes. Chama a atenção, no entanto, que a entidade não qualifique de relevantes os bens jurídicos protegidos nos dispositiv­os da lei contra os quais se insurge. Eis uns exemplos: o direito de não ser preso ilegalment­e, o direito ao silêncio, o direito à ampla defesa, o direito de não ser perseguido arbitraria­mente pelo poder público, o direito de não ter bens bloqueados ilegalment­e. Se isso não merecer proteção da lei, o que deverá merecer? Vale lembrar que a Justiça aplica a pena de detenção de seis meses a dois anos a quem desacatar funcionári­o público no exercício da função ou em razão dela. Não é hora de se instaurar um mínimo de equilíbrio?

A Lei 13.869/19 não retira nenhuma vírgula da autoridade dos juízes e dos funcionári­os públicos. O que ela veio foi retirar a impunidade de quem abusa dolosament­e de sua autoridade. Mais constituci­onal, impossível.

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