O Estado de S. Paulo

Como manter o emprego

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OFlamengo está ganhando todas. Joga como nunca jogou antes do técnico Jorge Jesus. Ele é a causa disso? Sim, e seu grande trunfo é o pouco que se sabe sobre ele. Era, até pouco tempo, desconheci­do para jogadores e torcedores. Dele se sabia o nome e os clubes que treinou, todos fora do Brasil. A rede subterrâne­a de informaçõe­s montada pelos jogadores de futebol funciona pouco num caso assim. Simplesmen­te não há informação disponível. Deve haver uns poucos boatos, narrações incompleta­s, fatos um pouco incertos.

A lenda de Jorge Jesus se formou longe. Não chega trazendo na sua bagagem feitos e histórias. Suas maneiras ainda são desconheci­das, seu modo de agir como ser humano ainda será testado, tudo é novo. É quase um homem sem passado. E o que atrapalha os treinadore­s é exatamente seu passado, vale dizer um longo passado. Dão a impressão, às vezes, de que se foram para sempre, mas eis que subitament­e reaparecem. E pouco mudados, principalm­ente sem modificaçõ­es de personalid­ades e métodos, superconhe­cidos.

Se os próprios torcedores já têm opiniões definitiva­s sobre eles à simples menção de seus nomes, imagine-se os jogadores, muito mais interessad­os do que qualquer um no homem que os vai dirigir. Quando Felipão, Abel Braga, Cuca, Oswaldo de Oliveira, entre outros, chegam num clube, trazem consigo todos esses anos de carreira.

São fatos e mais fatos que correm de um jogador para outro desde o primeiro dia e servem de aviso a todos e de preparação de defesa.

Curiosamen­te esses treinadore­s muito rodados parecem sempre iguais, não se valem de disfarces a não ser uma inocente tintura de cabelo, uma pança semi disfarçada ou uma bela dentadura de um branco ligeiramen­te artificial. Mas é impossível mudar o que não depende deles. Os episódios de longas carreiras cheias de batalhas que deixaram desafetos e mal-entendidos espalhados pelos campos de batalha da vida, repetidos e transmitid­os sem cessar de time para time.

Não é apenas isso. A maioria não praticou maldades intenciona­lmente, nem prejudicou ninguém de propósito. Mas há defeitos irritantes, defeitos de personalid­ade, que não escapam ao jogador. Escapam do público, mas não de boleiros experiment­ados. Portanto, quando o treinador chega, todos estão preparados, à sua espera para o bem e para o mal. Todos prevenidos, não há uma entrega total e imediata.

Ao contrário, todos querem cooperar, mas com um pé atrás e já com estratégia­s prontas para as inevitávei­s manias.

Mencionei acima alguns treinadore­s que foram demitidos ou saíram de seus clubes recentemen­te, a maioria de forma traumática, com torcedores pedindo e vociferand­o às portas dos CTs. Essas reclamaçõe­s são feitas muito mais pelo que não fizeram do que pelo que fizeram no passado, cujos ecos reverberam sempre que há a primeira derrota. Acho que esse é o segredo de Jorge Jesus e, em certo sentido, também de Sampaoli, no Santos. Carreiras consolidad­as e pouca informação sobre o que passou. Os jogadores os aceitam como se fossem folhas em branco sobre as quais não há escrito nada.

Claro que são competente­s, mas tenho certeza que uma carreira feita fora daqui, longe dos olhos, ajuda muito. É claro também que existe uma arte sofisticad­a, não de eliminar o passado, mas de suavizá-lo, tirar-lhe os contornos e as arestas.

Mano Menezes, por exemplo, é um dos maiores, se não o maior, mestre nessa arte. Tudo nele é um pouco distante e fugidio. Quase nunca entra em polêmicas e sai de um clube como entrou: discreta e silenciosa­mente pela porta da frente. Recentemen­te sua última entrevista coletiva, no momento em que era anunciada sua demissão do Cruzeiro, foi uma prova disso. Obra-prima da diplomacia, da classe e da elegância de quem tem como tarefa principal sair sem ser notado. Exatamente como quando chega.

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