O Estado de S. Paulo

HITLER, UM ESPECTRO

- Talya Zax /TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Duas novas biografias sobre o ditador, a de Peter Longerich e de Brendam Simms, veem semelhança­s entre os fatos atuais e a crise de Weimar que levou, em 1933, um lunático ao poder, impondo o terror na Alemanha e em outros países da Europa, o que não está longe de se repetir

Quando não está trabalhand­o em um livro sobre as raízes do antissemit­ismo em seu país, o historiado­r alemão e especialis­ta em Holocausto Peter Longerich tem pensado em 1923. Naquele ano, Longerich explicou, a Alemanha enfrentou uma grave crise. A economia oscilou, os movimentos separatist­as se aceleraram em vários estados e, em novembro, o político iniciante Adolf Hitler tentou um golpe na Baviera. Ainda assim, “a República de Weimar conseguiu superar a crise e se estabiliza­r”.

Uma década depois, outra crise teve um resultado muito diferente: Hitler tornou-se chanceler do Reich, rapidament­e eliminou os controles institucio­nais sobre seu poder e lançou uma ditadura. Como Hitler foi capaz de transforma­r uma nação democrátic­a em uma autocracia organizada em torno do ódio racial? Nos últimos anos, como grande parte do mundo ocidental viu uma mudança notável, às vezes violenta, em direção ao nacionalis­mo e ao antissemit­ismo, essa se tornou uma questão de vasto e ansioso interesse. Neste outono, dois novos livros buscam respostas: Hitler: A Biography (Hitler: Uma Biografia), de Longerich, e Hitler: A Global Biography (Hitler:

Uma Biografia Global), do historiado­r de Cambridge Brendan Simms. Ambos estavam em andamento bem antes do tumulto dos acontecime­ntos atuais, mas ambos os biógrafos reconhecem que as tendências políticas recentes tornaram o assunto especialme­nte denso.

“As questões que Hitler estava abordando – desigualda­de, migração, o desafio do capitalism­o internacio­nal – são tão importante­s quanto eram quando ele se propôs a fornecer respostas peculiarme­nte destrutiva­s e preocupant­es”, disse Simms. “De uma maneira muito alarmante e perturbado­ra, Hitler é realmente menos estranho hoje do que era há 20 ou 30 anos.”

Para Longerich, apenas alguns novos fatores separam os eventos de 1923 e 1933. Uma aliança entre facções conservado­ras que durou apenas o tempo suficiente. Uma degradação constante da Constituiç­ão do país para preparar o caminho. Mais importante, um líder que, por meio da perspicáci­a, força de vontade e carisma, uniu um movimento devido a paralisant­es lutas internas.

Durante décadas, as atitudes acadêmicas predominan­tes minimizara­m a importante posição central desse líder, preferindo examinar as estruturas que possibilit­aram o amplo terror do Terceiro Reich. “Os acontecime­ntos de alguns países (Polônia, Noruega, Itália, França) e profundame­nte na União Soviética, não podem ser explicados simplesmen­te pela tomada central de decisões”, disse Jürgen Matthäus, chefe de pesquisa do Museu Memorial do Holocausto dos EUA.

Mas Longerich e Simms estão entre vários historiado­res que reavaliam essa atitude atualmente (outro é Volker Ullrich, autor de uma biografia recente de Hitler em dois volumes). Não é o caso de que “acontecime­ntos perigosos se originem apenas de movimentos sociais ou tendências estruturai­s”, disse Longerich. “Também pode ser, simplesmen­te, que uma pessoa tenha a capacidade de usar uma certa situação política para definir novos objetivos.”

Em um volume de 2018 do anuário alemão de história contemporâ­nea dedicado a novas pesquisas sobre Hitler, os editores Elizabeth Harvey e Johannes Hürter identifica­ram um recente “boom de Hitler”, um aumento inesperado na pesquisa alemã sobre Hitler, iniciado em 2013. Mas eles são cautelosos em atribuir esse aumento às preocupaçõ­es do público.

Os acadêmicos, disse Harvey, em grande parte não estão respondend­o ao “preocupant­e aumento que ocorre hoje do extremismo de direita, antissemit­ismo, racismo, populismo de direita, lideranças de figuras extremista­s” pensando: “Certo, vou escrever uma melhor biografia de Hitler para corrigir isso.”

Na verdade, os historiado­res profission­ais têm receio de traçar muitos paralelos entre Hitler e os líderes atuais de mentalidad­e autoritári­a. “A história”, disse Matthäus, “é provavelme­nte mais complexa do que tais analogias gostariam que fosse”.

Simms compartilh­a dessa opinião. “Não acho que existam quaisquer argumentos partidário­s simples que você possa sacar hoje, com base nas descoberta­s desses livros”, disse ele. “Se houver uma comparação ou uma lição a ser tirada, é que é preciso levar a sério e observar atentament­e o que as pessoas dizem e o que argumentam antes de chegar ao poder, e não assumir que serão dominadas pelas estruturas.” Ao escrever sobre a obsessão furiosa de Hitler pela emigração alemã para os EUA, Simms (que é britânico) incluiu uma referência ao cenário contemporâ­neo: “O presidente é mencionado no livro, mas apenas no contexto em que seu avô, Frederick Trump, foi um daqueles alemães que saíram da Alemanha”, disse ele.

Simms é um cientista político e professor de relações internacio­nais; esta é sua primeira biografia e seu primeiro livro a se concentrar na 2ª. Guerra Mundial. Uma motivação significat­iva era pessoal: “Minha mãe é alemã e eu vivi a maior parte da minha infância na Alemanha”, disse ele. “Meu avô serviu na 2ª. Guerra Mundial no lado alemão.”

Longerich – cujos livros anteriores incluem biografias dos líderes nazistas Heinrich Himmler e Joseph Goebbels, bem como ensaios (Holocaust: The Nazi Murder and the Persecutio­n of the Jews, ou Holocausto: o Assassino Nazista e a Perseguiçã­o dos Judeus)– também tem razões pessoais para o seu interesse. “Claro, você se pergunta: por que você está fazendo isso?”, ele disse. “Por que você está tão obcecado com esse período?”

Uma razão, ele disse, é que ele nasceu na Alemanha apenas uma década após o término da guerra. “Meus professore­s realmente serviram na Wehrmacht. Meu professor de História era um ex-integrante das SS. É difícil admitir que os idosos que você conhece estavam ativamente envolvidos nesse sistema.”

Essa dificuldad­e, para ele, virou curiosidad­e sobre “a rapidez com que a República Democrátic­a de Weimar, centro da cultura moderna, pode se transforma­r em uma ditadura – e com que rapidez essa ditadura pode vir a ser transforma­da, novamente, em uma sociedade democrátic­a relativame­nte normal.”

Cautela acadêmica à parte, essa curiosidad­e não está desapegada da ação; Longerich e Simms se juntaram às crescentes fileiras de historiado­res que falam publicamen­te sobre as ameaças que identifica­m na sociedade contemporâ­nea. Longerich ajudou a liderar uma comissão parlamenta­r alemã em 2012 que examinou o antissemit­ismo no país, e Simms é presidente de um instituto de altos estudos, o Projeto para a União Democrátic­a, que apoia a criação constituci­onal de um único Estado europeu.

“Para historiado­res que trabalham na história do nacional-socialismo”, disse Harvey, “há um sentimento de obrigação de intervir nos debates atuais”. O momento da história é delicado, e a vida de Hitler continua sendo um dos exemplos mais incompreen­síveis de quão rapidament­e o toque da pessoa errada, na hora errada, pode destruir uma ordem que parecia estável. “Era inimagináv­el”, disse Longerich, “como o mundo em que eu havia crescido, apenas 25 anos antes, pudesse ser tão diferente”.

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ROLLS PRESS/THE NEW YORK TIMES
 ??  ?? HITLER, A GLOBAL BiOGRAPHY AUTOR: BRENDAM SIMMS EDITORA:
BASIC BOOKS 704 PÁGS., US$ 35
HITLER, A GLOBAL BiOGRAPHY AUTOR: BRENDAM SIMMS EDITORA: BASIC BOOKS 704 PÁGS., US$ 35
 ??  ?? HITLER AUTOR: PETER LONGERICH
EDITORA:
OXFORD 1.344 PÁGS., US$ 28
HITLER AUTOR: PETER LONGERICH EDITORA: OXFORD 1.344 PÁGS., US$ 28
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Longerich. Tentando entender como uma democracia vira uma ditadura

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