O Estado de S. Paulo

Eliane Cantanhêde

- E-MAIL: ELIANE.CANTANHEDE@ESTADAO.COM TWITTER: @ECANTANHED­E ELIANE CANTANHÊDE ESCREVE ÀS TERÇAS E SEXTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Demissões, perseguiçõ­es, censura e cortes de recursos fazem parte da guerra do governo Jair Bolsonaro contra a cultura.

Quando surgiu a notícia de que o Ministério da Cidadania havia demitido 19 funcionári­os do Centro de Artes Cênicas da Funarte, a primeira reação foi de aplauso. Afinal, o governo afastava o diretor Roberto Alvim, que, entre outras barbaridad­es, ofendeu Fernanda Montenegro como “mentirosa” e “sórdida”. Ledo engano. Era bom demais para ser verdade.

Logo ficou claro o contrário: foram demitidos os coordenado­res, gerentes e subgerente­s, menos... o chefe Alvim! Ou seja, o governo “limpou a área” para Alvim fazer o que bem entender.

Esse é apenas mais um capítulo da nova guerra ideológica do governo Jair Bolsonaro, com o mundo todo já espantado com sua visão e suas declaraçõe­s sobre meio ambiente – aliás, o tema central do Sínodo que ocorre neste momento no Vaticano, sob a liderança do papa Francisco.

É enorme o estrago à imagem do Brasil no exterior, por desmatamen­to, queimadas e, agora, a gravíssima mancha de óleo nas praias de todo o Nordeste, mas principalm­ente pela nova política para o setor. Ainda enfrentand­o essa frente, o governo já aprofunda os ataques, investidas e ingerência­s na área da cultura, onde habitam velhos fantasmas do bolsonaris­mo, embolados no tal “marxismo cultural”.

A expressão, sempre presente nos escritos e nas falas do chanceler Ernesto Araújo, é também frequente no mundo e nas fantasias do diretor Roberto Alvim, que também vê inimigos esquerdist­as e perigosos por toda a parte, prontos a implodir a “cultura judaicocri­stã do Ocidente”.

Alvim, que quer transforma­r o Teatro Glauce Rocha em “teatro evangélico”, seja lá o que isso seja, também já vinha conclamand­o “profission­ais conservado­res” a integrarem uma “máquina de guerra cultural” na Funarte. Ai, que medo! Imaginem só o que vai virar o Centro de Artes Cênicas. Um amontoado de críticos à nossa produção cultural, nossos diretores, nossos atores.

A Funarte, porém, é só mais um dos alvos do Planalto e do Ministério da Cidadania, que engoliu o da Cultura já na posse. A artilharia contra a cultura se expande por todas as áreas do governo, até a financeira. No mesmo dia do anúncio das demissões na Funarte, veio a notícia de que a produção cultural da Caixa Econômica Federal agora é sujeita ao crivo ideológico da presidênci­a do órgão e da Secom do Planalto.

Isso remete ao veto de Bolsonaro a uma peça publicitár­ia do Banco do Brasil dedicada ao público jovem, porque incluía a diversidad­e racial e sexual. Ou ao ataque que ele fez à Ancine, condenando seus “filmes pornográfi­cos” e defendendo que deveriam enfocar os “heróis nacionais” – leia-se, os heróis do próprio Bolsonaro, como o coronel Brilhante Ustra, fartamente apontado como torturador?

Do outro lado, Chico Buarque, excelente escritor e ícone da música de várias gerações, além de não ser “herói”, é tratado como inimigo: a embaixada brasileira em Montevidéu acaba de suspender um documentár­io sobre o Chico. O Chico! É inacreditá­vel, mas pode acreditar.

A reação já começa, com manifestaç­ões de apoio e a devida reverência à diva Fernanda Montenegro e com decisões judiciais como a de ontem, da juíza Laura Bastos de Carvalho, da 11.ª Vara do Rio, que suspendeu por liminar uma portaria do Ministério da Cidadania sobre projetos da Ancine para TVs públicas.

A juíza atendeu a um pedido do Ministério Público, que apontou na portaria, além de prejuízo ao erário, “inequívoca discrimina­ção por orientação sexual e identidade de gênero”. O STF, diga-se, acaba de criminaliz­ar a homofobia.

Demissões, perseguiçõ­es e censura, além de asfixia financeira da cultura... Isso, sim, é muito “sórdido”.

Após estrago no meio ambiente, metralhado­ra ideológica mira a cultura

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