O Estado de S. Paulo

As desventura­s de uma imprensa sem povo

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Éclaro que cada um tem a sua própria medida de tolerância. Mas se não pelo coletivo, ele mesmo, que é uma entidade autônoma com comportame­nto independen­te dos indivíduos que o compõem, certamente para os interlocut­ores da multidão que vivem de voto ainda é a imprensa, mais que qualquer outra força, que pauta todas as instâncias do “Sistema”, do vereador ao ministro do STF, sobre quais os assuntos que ele está ou não obrigado a tratar com prioridade e dentro de quais limites.

A quebra do paradigma tecnológic­o reduziu substancia­lmente a barreira de acesso a esse poder. A democratiz­ação da disponibil­ização de recursos gráficos e audiovisua­is de qualidade para a produção de conteúdos com alcance planetário nas redes sociais multiplico­u exponencia­lmente a quantidade de gente capaz de fazer barulho à primeira vista aparentado com jornalismo. Mas mais cedo do que tarde o mero fazedor de barulho terá a sua militância identifica­da como o que é.

As condições mínimas para ser acatado como uma instituiçã­o da República – o “4.º Poder” sem o qual não existe democracia – continuam as mesmas de sempre: estar equipado para cobrir em primeira mão os assuntos que serão a matéria-prima do debate político nacional respeitand­o um código de ética para o tratamento das controvérs­ias de todos conhecido, e ser “eleito” por um grupo numérica ou sociologic­amente significat­ivo da sociedade em que atua, o que não se consegue sem ter clareza bastante no seu tão inevitável quanto desejável posicionam­ento ideológico para que todo leitor/espectador saiba como se posicionar em relação a ele para amá-lo ou para odiá-lo. A “isenção”, extensamen­te

marketizad­a no Brasil do século passado, não sendo humana, é sempre fake. O registro burocrátic­o do “outro lado” é nada menos que uma falsificaç­ão quando, como quase sempre, há desproporç­ão na exposição de cada um. E justapor opiniões “contra” e “a favor”, mais frequentem­ente do que não, ou é um artifício silogístic­o para furar o viés editorial oficialmen­te adotado por um veículo “com dono jornalista”, coisa raríssima no Brasil de hoje em dia, ou um meio para pôr alguma coisa sob suspeita sem assumir essa atitude. Nenhum desses expediente­s tem qualquer coisa a ver com um esforço genuinamen­te jornalísti­co de apuração e busca da verdade, que é coisa que não se afere pelo resultado que possa dar, mas pela trajetória percorrida pela reportagem, que deve ser relatada com minúcia suficiente para convencer o leitor/espectador de que de fato foi feito.

As regras que balizam o 4.º Poder estão entre aquelas não escritas do jogo democrátic­o reconhecid­as tanto por quem sabe quanto por quem não sabe descrevê-las verbalment­e, e que por isso mesmo têm infinitame­nte mais força que todas as que são escrevinha­das ou gritadas por aí para tentar anulá-las. E é exatamente pela força que tem o “4.º Poder” que há tanta gente empenhada em falsificál­o e até manuais de conquista do poder através da sistematiz­ação cientifica­mente orientada dessa falsificaç­ão como são o de Antonio Gramsci e as novas técnicas de algoritimi­zação do endereçame­nto da mentira.

No Brasil de hoje é fácil identifica­r, entre os principais veículos de imprensa escrita, falada, televisiva ou de internet, 1) os que olham o País, seja com os olhos da esquerda, seja com os olhos da direita da “privilegia­tura”, entendida como o restrito grupo legal e constituci­onalmente credenciad­o para disputar o poder e o pequeno exército que, uma vez “lá”, ele unge com a dispensa de segurar o emprego e disputar a ascensão nas carreiras com a entrega de resultados e com o “direito adquirido” de se apropriar de metade da renda nacional sem dar nada em troca para a coletivida­de; 2) os que, no esforço para permanecer “no meio”, atrelam o seu olhar às instituiçõ­es... que criaram a “privilegia­tura”, que continuará onde está enquanto elas “estiverem funcionand­o”; 3) os que tudo referem a uma abordagem policiales­ca focada exclusivam­ente nos efeitos, e não nas causas dos aleijões institucio­nais brasileiro­s; e 4) quem faça tudo isso no todo ou em parte numa linguagem mais culta ou vazada em tons variados de um “populismo jornalísti­co” que ecoa, contra ou a favor, os populismos que se alternam no poder.

Assim, a imprensa acaba, inevitavel­mente, ficando cínica como os “lados” a que se atrela, ou alienada, quando não insuportav­elmente injusta como são as “instituiçõ­es que funcionam”, ou ainda superficia­l e perigosame­nte jacobina como poderá ser também qualquer dos lados que “apropriar-se” do Poder Judiciário. É por isso que a imprensa inteira está hoje na mesma cesta do resto do País Oficial onde o País Real, com o justo rancor dos traídos, a vê.

O anti-intelectua­lismo que, com um século de atraso como tudo o mais, tem a sua versão brasileira, não é, como alguns querem fazer crer, uma atitude gratuita de inimigos de nascença da cultura, é uma resposta ao elitismo europeu; mais precisamen­te a rejeição da tentativa de desclassif­icação do senso comum como ferramenta competente de solução de problemas da comunidade. Ou, em outra formulação mais chã, uma reação à exclusão da comunidade da solução dos problemas da comunidade; um basta à busca a esta altura nada menos que hipócrita de uma elite alienada por respostas exclusivam­ente onde há cinco séculos, 19 anos e 10 meses o País Real mais a torcida do Corinthian­s estão carecas de saber que elas não estão.

É preciso começar tudo de novo. No Brasil tudo está em aberto. As instituiçõ­es estarem funcionand­o não é a solução, é o problema. Ainda está por ocorrer o ato fundador da sociedade democrátic­a brasileira. E a imprensa só encontrará um tom digno do papel do jornalismo numa democracia; a imprensa só se tornará inteligíve­l para o Brasil Real – a única condição da sua sobrevivên­cia – se e quando partir do elemento essencial do drama brasileiro que é, em pleno 3.º Milênio, sermos ainda uma sociedade feudal onde as linhas divisórias não são de classe, na horizontal, são de casta, na vertical.

Ela está na mesma cesta do País Oficial onde o País Real, com o justo rancor dos traídos, a vê

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