O Estado de S. Paulo

Francisco se preocupa com as almas, longe da polarizaçã­o atual

- Marcelo Godoy

Os generais do Planalto estão apreensivo­s. O começo do Sínodo da Amazônia confirmou alguns de seus temores, como a presença de índios brasileiro­s na Basílica de São Pedro. É um erro. Deve-se resistir à tentação de se discutir o sínodo apenas do ponto de vista da polarizaçã­o direita-esquerda ou conservado­r-progressis­ta dos dias atuais. Mas há quem reaja de maneira semelhante à dos generais dos anos 1970. Vê-se, na Igreja, no Vaticano, o poder de um Estado estrangeir­o. Não se quer enxergar na ação do cardeal d. Claudio Hummes e do papa Bergoglio a “denúncia dos poderes contrários aos desígnios da salvação, postos por Deus para serem cumpridos por todos os homens”.

Desconhece­m a atitude soteriológ­ica da Igreja como reação ao desejo de alguns de rejeitar a religião católica como fonte de legitimida­de de poder e à tendência de negação de toda transcendê­ncia presente na modernidad­e. Quanto maior a insubmissã­o da Igreja, mais forte a reação dos poderes que se lhe opõem. E enxergam em d. Cláudio um novo d. Vital ou um d. Helder Câmara. Acreditam que o sínodo possa produzir um documento como o Eu ouvi os clamores do meu povo, de 1973 que trazia a assinatura de d. Helder e de outros 12 bispos do Nordeste, afirmando que, assim como Deus se compromete­ra com a humanidade, cada homem é chamado a se compromete­r com seu semelhante, de preferênci­a pelo fraco e pelo oprimido. Não conhecem a história de frei Bartolomeu de las Casas. E seu trabalho missionári­o em Chiapas há 500 anos, quando nem “esquerda” havia.

Se o presidente Jair Bolsonaro, o general Augusto Heleno e os militares quiserem entender o que se passa no Sínodo da Amazônia deviam ler a obra Igreja contra Estado, do filósofo e professor da Unicamp Roberto Romano. Ela mostra como a ação do papa reafirma o carisma da instituiçã­o, em sua essência de ecclesia semper reformanda. Segue o estilo da constituiç­ão pastoral Gaudium et Spes (Alegria e Esperança), que recebera do papa São Paulo VI o subtítulo “Sobre a Igreja no Mundo Atual”.

Francisco faz o aggiorname­nto (atualizaçã­o) da Igreja em um mundo em que a questão climática assume urgência planetária. Ao lado da pedagogia dos oprimidos, busca-se a “unidade do Povo, nessa assembleia divina e humana pela qual os bispos são responsáve­is e a quem a Igreja deve servir”. A Igreja quer dar voz aos despossuíd­os para que haja diálogo. Assim, ela procura exorcizar “o perigo de uma sociedade fundamenta­lmente dividida e abalada pelos conflitos”. E são muitos os que dividem os povos na Amazônia. Francisco vai atrás da miragem do social uno e harmonioso.

Bolsonaro diz que os estrangeir­os que falam sobre a Amazônia estão interessad­os apenas em seus metais. O papa se preocupa com as almas. Querer reduzi-lo a um mero dado empírico da polarizaçã­o dos dias atuais é desconhece­r a Igreja e a forma como ela se relaciona com o mundo moderno. Incapaz de deixar sua lógica binária, o bolsonaris­mo acusa o papa de esquerdism­o. Vive preso às categorias de pensamento do passado. Terá assim algum futuro? A Igreja se atualiza. E extrai do passado e do presente o seu futuro entre os homens.

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