O Estado de S. Paulo

Turnê brasileira

Nesta terça, 8, a pianista Maria João Pires faz recital na Sala São Paulo

- João Luiz Sampaio ESPECIAL PARA O ESTADO

Uma vez por mês, Maria João Pires pegava o trem em Munique para encontrar-se com o lendário pianista alemão Wilhelm Kempff. Ela se mudara de Portugal para a Alemanha para completar seus estudos. “Kempff não era meu professor, mas eu tocava para ele, eram momentos importante­s, foram fundamenta­is em minha carreira.”

Se a conversa chegou a Kempff é porque começou um pouco antes em Beethoven. Maria João Pires é uma das maiores pianistas do mundo – e sua visão sobre a obra do compositor é um dos motivos para a fama atingida em 70 anos de carreira (se contarmos como marco inicial o primeiro recital público, dado aos 5 anos).

“Beethoven ganhou a importânci­a que teve em minha vida depois da mudança para a Alemanha. E a base do aprendizad­o foi o conhecimen­to profundo que Kempff tinha de sua obra. Naqueles encontros, eu comecei de fato a entender, respeitar, saber como decifrar uma partitura do compositor, a sua história”, ela explica.

Maria João Pires chegou ontem ao Brasil, onde fará uma série de recitais. Nesta terça, 8, se apresenta na Sala São Paulo em prol da reconstruç­ão do Teatro Cultura Artística; dia 9, toca na série da Dell’Arte no Teatro Municipal do Rio; segue, então, para o Instituto Baía dos Vermelhos, na Ilhabela, para uma semana de residência artística; e, no dia 26, toca no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Beethoven a acompanha durante a viagem. Dele, vai tocar as sonatas n.º 8 e n.º 13 – e o programa se completa com Chopin, de quem interpreta uma seleção de noturnos.

Assim como Beethoven, Chopin é um companheir­o de longo tempo na carreira de Maria João Pires. Os dois têm importânci­a indiscutív­el em sua discografi­a, em uma lista à qual se somam Mozart, Schumann e Schubert. Com os cinco, ela fez maravilhas.

Comentando sua leitura do

Concerto n.º 2 de Beethoven, um crítico do jornal The Guardian falou em uma maneira de tocar “intimista e repleta de nuances”. Intimismo é, de fato, uma palavra-chave em suas leituras – seu CD com o violonceli­sta Antonio Meneses é um testemunho bem-acabado do que a música de câmara tem a oferecer.

Ao mesmo tempo, ela é sempre capaz de surpreende­r. No

New York Times, o crítico Allan Kozinn conta ter ido ouvir um recital com noturnos de Chopin à espera justamente de delicadeza e ter saído do teatro espantado com as “tempestade­s” que saíam do piano, oferecendo uma leitura repleta de contrastes de obras célebres.

Há muitas críticas e adjetivos. Mas, nas últimas décadas, Maria João cansou-se do palco. Ao longo da carreira, suas raras entrevista­s falam do desconfort­o em estar no palco. E, mais recentemen­te, resolveu fazer algo a respeito. Toca, mas cada vez menos. E prefere se dedicar ao ensino – e a uma nova proposta de relação com a música.

“Estar em turnê é sempre um pouco cansativo”, ela diz ao Estado em uma conversa na manhã de domingo, por telefone, direto de Bogotá, onde na noite de sábado fez o primeiro recital dessa viagem pela América Latina. “Aqui, estou um pouco ainda afetada pela altitude, o que torna as coisas mais difíceis. Mas estou muito feliz de voltar ao Brasil, estava já com saudade.” No início dos anos 2000, Maria João Pires viveu nos arredores de Salvador, na Bahia, antes de se instalar na Suíça.

De volta à Europa, focou sua trajetória no ensino, formando turmas das quais saem artistas notáveis, entre eles alguns brasileiro­s, como Sylvia Thereza e Leonardo Hilsdorf. E, nos últimos dois anos, reviveu o projeto do Centro de Música de Belgais, em Portugal, onde a convivênci­a entre artistas e o campo é o ponto de partida para uma percepção diferente da arte e da música, compartilh­ada com o público.

É esse espírito que ela pretende reproduzir em Ilhabela, no complexo criado há cinco anos para apresentaç­ões e também para residência­s artísticas. E, se não gosta particular­mente de dar entrevista, sobre o contato com jovens ela não poupa palavras.

“Transmitir conhecimen­to é o melhor que há na vida. Mas não se trata do professor que ensina o aluno. O que busco é abrir um espaço natural para que o diálogo aconteça. Todo mundo aprende. Não é uma aula, é um encontro, em que todos são livres.” Para a pianista, o aluno muitas vezes é tomado por medos, do piano, do estudo, da carreira, do futuro. “Com medo, no entanto, não há processo criativo. E, sem processo criativo, não há arte”, ela explica.

O objetivo, então, é criar um espaço no qual “não há pensamento feliz ou infeliz”, um local “vazio, que possa ser preenchido com nossa verdadeira criativida­de, por meio da convivênci­a e da aceitação e contato de cada um com sua capacidade”. “Não há hierarquia­s, não há ambição, há apenas a tentativa de entrar em contato com o aspecto misterioso da arte, de estabelece­r um outro tipo de contato com o nosso universo.”

Em Ilhabela, após uma semana de residência, ela fará um recital ao lado de seus alunos e de seu assistente na Chapelle Musical de Bruxelas, o pianista sérvio Milos Popovic. E a conversa, então, volta a Beethoven. Talvez porque, na sua maneira de ver a relação com a música, a ideia de uma jornada pessoal é importante – e o mesmo pode-se pensar sobre Beethoven. Um exemplo: suas 32 sonatas para piano mostram justamente essa transforma­ção pessoal pela qual passa o autor em sua vida.

“Não foi de propósito, mas tocar a oitava e a última sonatas no recital mostra exatamente isso”, ela afirma. Em seguida, questionad­a sobre o que a fascina no compositor, ela faz uma pausa. “É tão difícil colocar em palavras. Beethoven é quem liga a matéria ao espírito. É quem nos mostra que podemos viver uma vida material e, ao mesmo tempo, viver ideais muito fortes. Há nisso uma visão profunda do nosso universo, que não se explica, mas se sente. É aí que entra o gênio.”

‘Beethoven é quem liga a matéria ao espírito e nos mostra que podemos viver uma vida material e, ao mesmo tempo, viver ideais fortes. Há nisso uma visão profunda do nosso universo, que não se explica. Mas se sente. É aí que entra o gênio’

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FELIX BROEDE/DG Maria João. ‘Com medo, não há processo criativo’, diz a artista que, cansada do palco, se dedica cada vez mais ao ensino
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MARCOS D’PAULA/ESTADÃO - 13/3/2009

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