O Estado de S. Paulo

Ela viajou e as coisas que ficaram para trás

- GILBERTO AMENDOLA

Ela viajou. Deixou a luz da sala acessa. Duas contas em cima da mesa. E a cama sem arrumar.

Ela viajou. O tubo de pastas de dente ainda tem a marca dos dedos dela. O xampu ficou pela metade. E a toalha pendurada no boxe ainda não secou.

Ela viajou. O porteiro pediu para avisar que o pisca-alerta do carro ficou ligado. Mas a vaga é boa e já tem dois moradores querendo ocupá-la.

Ela viajou. O gerente do banco deixou três recados no celular. Na escola, já avisaram as crianças. Os pais também me mandaram lembranças.

Ela viajou. O aviso na porta da geladeira ainda está valendo: sabão em pó e detergente. Na pia, pratos sujos e uma taça de vinho onde se vê um resto de batom.

Ela viajou. O livro que estava lendo continua aberto em cima do sofá. Marcou com lápis uma passagem que, em outras circunstân­cias, me deixaria magoado.

Ela viajou. E o cachorro não quer mais saber de comida. Tem os olhos vidrados na porta. Quase me mordeu.

Ela viajou. Na padaria, perguntara­m por ela. Na firma, perguntara­m por ela. Na academia, perguntara­m por ela.

Ela viajou. Se depender de mim, as plantas vão secar. Se depender de mim, as instalaçõe­s vão queimar. Se depender de mim... Tem a questão do cachorro – acho que sei quem pode ficar com ele.

Ela viajou. Meus amigos não param de me ligar. São todos muito simpáticos e solícitos, mas eu não quero conversar. A família dela acha que a culpa é minha. Não disse, mas acha.

Ela viajou. No computador, o registro de visitas em sites de passagens aéreas. Tantos lugares. Acho que ela conhecia a maioria. Faltavam o Japão, a Noruega e o Atacama.

Ela viajou. Os registros do Instagram continuam lá. A gente jantando. A gente bebendo. A gente descendo de caiaque uma ribanceira. A gente tirando uma selfie. Ela sozinha. Ela sozinha. Paisagem aleatória. Uma árvore desmilingu­ida. Um vidro embaçado. A gente abraçado. Ela sozinha. Ela viajou. Tem um passaporte antigo e cheio de carimbos. Ela guardava muita quinquilha­ria. Coisas de pendurar no pescoço. Ingressos de shows, contas de restaurant­e, papéis de bala, calmantes e

AUSÊNCIA ••• Os registros de Instagram ainda estão lá

recortes de jornal.

Ela viajou. Quem não quer estar em outro lugar? Quem não quer uma vida diferente? Quem não está cheio de ver as mesmas caras todos os dias?

Ela viajou. Deu na telha. Deu a louca. Foi um impulso.

Ela viajou. A casa está opaca. É como se vivesse em um aquário. O cachorro está mudo. Tudo o que ficou pra trás está em silêncio.

Ela viajou. Que horas são? Nessa hora, ela já chegou onde queria? Está feliz? Em paz? Ou ainda não está nada?

Ela viajou. Teve coragem. Eu não teria.

Ela viajou. Quando toca a campainha ainda acho que...

Mas ela viajou.

Ela.

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