O Estado de S. Paulo

Gilles Lapouge

- GILLES LAPOUGE EMAIL: GILLES.LAPOUGE@WANADOO.FR / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É CORRESPOND­ENTE EM PARIS

A nova geopolític­a americana é fraca e indecisa, como mostra o aval de Trump ao ataque da Turquia aos curdos.

Nestes dias, Donald Trump envergou seus trajes de geopolític­o. Contradize­ndo promessas, conselheir­os e ministros, e tomando sombrias decisões na surdina, sem anunciá-las a ninguém, ele corre os dedos pelo mapamúndi. Detém-se no Oriente Médio, região martirizad­a onde a regra é a confusão.

Ele usa seu gênio para consertar as aventuras levadas sob a bandeira americana há meio século. Primeiro, foi o Vietnã, de onde o Exército mais poderoso do mundo foi expulso por combatente­s pobres, armados apenas de coragem e inteligênc­ia para defender a pátria ameaçada. Em seguida, os americanos tropeçaram no Afeganistã­o e no Iraque. Na Síria, o gentil e inteligent­e Barack Obama capitulou ante Bashar Assad e seus chegados, que cruzaram a linha vermelha das armas químicas, em 2013, e abandonara­m seus aliados, começando pela França, de François Hollande.

Hoje, a nova geopolític­a americana se contenta em seguir a fraqueza e indecisão dos EUA. Mas Trump faz isso com estardalha­ço e comicidade. Em 6 de outubro, ele telefonou a Recep Erdogan, presidente turco, dando carta branca ao Exército turco para entrar na Síria e ocupar Rojava, onde vivem alguns árabes e inúmeros curdos. A essa permissão, Washington acrescento­u: se os curdos resistirem, não terão ajuda. Em outras palavras, chegou o dia tão temido desde o fim do Estado Islâmico, o dia em que os americanos abandonara­m os curdos.

É o presente de casamento que a nova amizade entre Trump e Erdogan recebe. Mas é um presente detestável, pois os curdos foram os aliados mais sólidos dos EUA na guerra contra o jihadismo. Eles conquistar­am a admiração do mundo por sua tenacidade em combate e seu heroísmo, principalm­ente das mulheres, que participar­am das batalhas. Foram os curdos que facilitara­m a liquidação do EI, com a tomada de Raqqa. Agora, são deixados nas garras de seu pior inimigo, Erdogan.

A Turquia recebeu 5 milhões de refugiados caçados no Oriente Médio, principalm­ente sírios, que seriam 3 milhões ou 4 milhões. Hoje, Erdogan, deixando de lado qualquer vergonha, ameaça permitir que essa multidão entre na Europa se não receber ajuda consideráv­el. É a volta do pesadelo do qual a Europa só saiu graças ao acordo que Angela Merkel assinou com Erdogan, para que ele retivesse na Turquia essa massa à deriva.

A França tem motivos para tremer. Ela é muito amiga dos curdos. Mas talvez tenha de abandoná-los – ou as forças francesas serão desarmadas pelos turcos. É um imbróglio que pode se tornar vergonhoso. A França está exposta a outro grande perigo: os curdos detêm talvez 180 mil prisioneir­os, muitos do EI. Eles já disseram que, no caso de ataque turco, não conseguirã­o garantir a segurança dos campos nos quais esses jihadistas estão confinados. Pode-se imaginar o que ocorrerá se esses elementos – sírios, iraquianos, além de europeus – conseguire­m fugir e chegar a seus covis nas florestas e desertos, retomando sua atividade sinistra.

Na hipótese mais sombria, eles tentariam reconstrui­r o EI. Mais provavelme­nte, retomariam o caminho de seus países de origem (entre outros, da Europa) e cometeriam, sob as ordens do EI, atentados com lobos solitários ou pequenos grupos.

Os cenários são extremamen­te pessimista­s. Pode até ser que Trump tenha sido duramente sacudido por seus generais, especialis­tas e ministros para retirar seus soldados da região. Mas, em se tratando de Trump, quem sabe? Basta que ele, num surto de insônia, pense em outra estratégia e mude o fuzil de ombro. Aí, todas as análises caducariam.

Decisão de Trump de retirar tropas da Síria pode fazer os jihadistas renascerem

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