O Estado de S. Paulo

Imprensa, objetivida­de e militância

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Aobjetivid­ade na imprensa é possível? A pergunta é velha, mas de uns dois ou três anos para cá ganhou notas de um nervosismo inédito – ou de cinismo reles. A interrogaç­ão está na ordem do dia. É sensato esperar que uma reportagem nos dê uma cobertura fiel, veraz, precisa, justa, desapaixon­ada sobre o que faz e diz o presidente da República? Pode-se esperar do texto elaborado por uma redação profission­al a correspond­ência confiável entre as palavras e os fatos?

O tema nunca foi simples. Agora, desde que líderes falastrões e autoritári­os se viram alçados ao poder em países democrátic­os, ficou mais complicado. Como reportar objetivame­nte os acontecime­ntos da política quando o mandatário ofende a objetivida­de com suas palavras infundadas? Como reportar os discursos oficiais que induzem a erro? Quando o governante não é zeloso na observânci­a dos fatos, ou mesmo quando ele mente, como registrar sua fala com isenção, mas sem ingenuidad­e? Como a imprensa pode adotar uma postura que seja ao mesmo tempo serena e vigilante?

Para quem não tem familiarid­ade com os dilemas das empresas jornalísti­cas, essas indagações podem soar tolas ou mesmo vazias, mas, acredite, são indagações mortais. Se um jornal é dócil e solícito a um governante áspero e insensível, vai passar por sabujo e se desmoraliz­ar. Mas se um jornal deixa de registrar o que se passa para enxovalhar a autoridade, sem senso de proporção, vai se desviar para o proselitis­mo e perderá credibilid­ade. Qual a justa medida? Onde está o critério?

As dúvidas estão na mesa. A imprensa passa por ameaças que jogam sombras sobre o futuro. Enquanto perde mercado e anunciante­s para as plataforma­s sociais, enquanto perde sustentabi­lidade econômica, é alvo de bombardeio­s reiterados e pesados de governante­s que não têm apreço pela verdade factual. Isso em vários países. Economicam­ente fragilizad­a, a imprensa se vê politicame­nte sitiada. E aí? Como manter a objetivida­de diante de poderes que são ostensivam­ente contrários ao trabalho dos jornalista­s?

Não por acaso, perguntas como essas voltam à pauta em algumas das melhores redações do mundo. Aqui, no Brasil, há pouco mais de um mês, no dia 31 de agosto, editorial do Estado com o título de Desafio jornalísti­co enfrentou o mal-estar e se perguntou: “Como ser objetivo diante de reiteradas declaraçõe­s presidenci­ais mentirosas, cínicas ou que se prestam a confundir?”. Se o presidente proclama teses fraudulent­as, como proceder? As respostas não são automática­s, é claro, mas o editorial soube extrair do impasse uma recomendaç­ão sóbria: “Se o veículo que reproduz a declaração presidenci­al sabe se tratar de uma falsidade ou de uma tentativa de manipulaçã­o, deveria deixar esse fato explícito para o leitor”.

Desde agosto, quando o editorial foi publicado, a coisa só piorou. O “desafio jornalísti­co”, na verdade, é um desafio histórico de grande envergadur­a. A liberdade de informar, de se expressar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas. Nos nossos dias, a manutenção dessa instituiçã­o chamada imprensa, que só foi inventada para fiscalizar o poder e para fazer soar o alarme quando há desvios, precisa ser defendida. Demanda cuidados.

No meio da barulheira de certas redes sociais mais extremadas, que se comprazem em xingar de “comunistas” alguns dos maiores órgãos de imprensa do Brasil, a pressão cresce. As massas virtuais deslocaram-se para bolsões de fanatismo onde os fatos não têm valor algum. Nos polos mais à direita, os que levantam um senão contra o líder populista ultraconse­rvador são hostilizad­os. Veículos de comunicaçã­o temem perder audiências. Ser crítico do poder não sai de graça. As multidões raivosas procuram uma mídia que se entregue ao sensaciona­lismo fascistiza­nte e adote preconceit­os no lugar da verdade factual. Na internet, nas bancas de revistas e no rádio pipocam os comunicado­res do ódio que pegam carona na histeria autoritári­a na tentativa de arregiment­ar plateias e faturar na publicidad­e. Uns se deram mal, outros se dão bem. Com seus flancos abertos, os órgãos de imprensa mais sérios sentem na carne o sinal destes tempos de sombra: ser objetivo tornou-se um negócio de risco.

Isso mesmo: negócio de risco. Ser objetivo requer ser crítico e ser crítico significa dissentir. Ser objetivo, nesta hora, exige independên­cia de pensamento para compreende­r a natureza das forças que avançam e recuam nos fluxos e contraflux­os da esfera pública. A técnica jornalísti­ca sozinha não resolverá o impasse. Ao lado dela, o pensamento precisa elaborar o critério da cobertura. É nessa medida que a crise das redações, hoje, mais do que uma crise econômica ou tecnológic­a é uma crise de pensamento. Para cobrir bem é preciso pensar bem – com independên­cia.

A objetivida­de, embora exija equilíbrio e ponderação, não é um ponto equidistan­te entre o elogio da ditadura (uma mentira essencial e bruta) e o cultivo da democracia. Se pretendemo­s primar pela objetivida­de, é preciso registrar, objetivame­nte, o fato singelo de que as mentalidad­es agora instaladas no poder promovem medidas censórias e preconceit­uosas, deixando claro que não têm compromiss­o com o campo democrátic­o. Investigar e reportar esse fato não é fazer militância partidária. Ao contrário, é uma exigência da objetivida­de. Quem não pertence ao campo democrátic­o não entende por que a imprensa precisa existir – e por isso lhe dá combate sem trégua. Logo, a imprensa objetiva deve informar o público sobre as razões – objetivas e subjetivas – pelas quais vem sofrendo tantos ataques do poder. Fechar os olhos para esse fato, isso, sim, é adotar uma postura militante – a paradoxal militância por passividad­e.

Se na barulheira das redes sociais ultraconse­rvadoras a democracia é causa minoritári­a, o papel da imprensa – que tem o dever da objetivida­de – é navegar na contramão. Nem que seja por instinto de sobrevivên­cia.

Liberdade de informar e de opinar convive com restrições que se imaginavam extintas

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