O Estado de S. Paulo

Cria da Maré, ‘Fúria’ lança olhar sobre questões sociais

Dança. Depois de longa temporada na Europa, espetáculo da Cia Lia Rodrigues chega a São Paulo nesta quinta

- Fernanda Perniciott­i ESPECIAL PARA O ESTADO

Quantos sentidos a “fúria” pode provocar em um tempo de aprofundam­ento das formas de violência? Depois de longa temporada pela Europa, a Lia Rodrigues Cia de Danças chega ao Sesc Consolação com a sua mais recente criação, Fúria, nesta quinta, 10, até 27 de outubro.

Fúria, em um primeiro momento, remete à ideia de ira, de uma explosão violenta. “A fúria não é só a associação com o furioso. A fúria também representa uma força que joga a gente na ação. Interessa não colocar Fúria só no horror, que também existe, mas também na produção de poesia, pensamento. A gente pode existir através da poesia, literatura, dança, do cinema, teatro”, conta a coreógrafa, em entrevista ao Estado.

Quando se fala no trabalho de Lia Rodrigues, não dá para esquecer o contexto sem o qual se reduz a compreensã­o de suas criações: o complexo de favelas da Maré, no Rio. É nesse lugar, onde os entendimen­tos de cidade, direito e humanidade tecem uma arquitetur­a política e poética, que a Cia de Danças Lia Rodrigues tem a sua sede, desde 2009, no Centro de Artes da Maré.

O Centro é também um dos frutos da parceria com a Redes da Maré, instituiçã­o da sociedade civil criada em 1997. Com ações voltadas às políticas culturais, educaciona­is, e de segurança pública, a Redes atua no complexo de 16 favelas que abriga cerca de 140 mil habitantes.

“O trabalho da Lia Rodrigues Cia de Danças é superimpor­tante, pois tenta pensar a cidade sem segregação, que se materializ­a, de fato, na vida dos moradores da favela. E foi o que nos ajudou a estruturar um equipament­o físico de cultura dentro da Maré. É na zona sul que está a concentraç­ão de equipament­os de cultura do Rio”, conta Eliana Sousa Silva, uma das diretoras e fundadoras da Redes, em entrevista por telefone.

Para Lia, a parceria com a associação é um dos principais motores de criação e de vivência no ambiente mareense. “Só estou na Maré porque tenho parceria. A relação com a Redes dá outro significad­o ao que faço. Sem ela, meu trabalho não seria esse, e eu nem poderia estar na Maré.”

É o reconhecim­ento de que há uma negação dos espaços de cidadania aos moradores da favela que mobiliza parte do trabalho da Redes: “Na cidade, os favelados não são reconhecid­os como cidadãos, não têm seus espaços reconhecid­os como cidade e não podem acessar os recursos que a cidade tem e ainda são submetidos a preconceit­os e estereótip­os”, conta Eliana.

A presença desses corpos, aos quais são negados direitos básicos de cidadãos, tem movido o interesse de Lia Rodrigues, principalm­ente a partir de 2004, quando inicia os primeiros projetos com a Redes. Em coreografi­as que mostram uma potência coletiva e, ao mesmo tempo, a crueza de uma condição de violência, foi construind­o, ao longo desses 15 anos, um aprofundam­ento da presença da Maré nas suas criações.

Em Fúria, elementos de outras criações podem ser reconhecid­os. “É um trabalho ecológico, autoantrop­ofágico, porque une todas as outras criações nele”, conta a coreógrafa.

Além de uma constelaçã­o de imagens históricas e recentes, segundo Lia, “de dor, alegria, violência, amor”, do Brasil e do mundo, que foram selecionad­as com os bailarinos, o trabalho inclui ainda uma trilha de referência­s indígenas.

Fúria parece vir na esteira das coisas que produzem ação e vida diante da reação e da morte. O material de divulgação distribuíd­o à imprensa já traz uma pista, na voz da escritora Conceição Evaristo: “E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um olho chora / o outro espia o tempo procurando a solução”.

 ?? SAMMI LANDWEER ?? Arte e cidadania. Sede da cia é no complexo de favelas da Maré, no Rio
SAMMI LANDWEER Arte e cidadania. Sede da cia é no complexo de favelas da Maré, no Rio

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil