O Estado de S. Paulo

No principal encontro da cozinha de vanguarda, Brasil brilha com Jefferson Rueda e Bel Coelho.

- Patrícia Ferraz SAN SEBASTIAN

Os cozinheiro­s brasileiro­s Jefferson Rueda, d’A Casa do Porco, e Bel Coelho, do Clandestin­o, tiveram participaç­ões de destaque no Gastronomi­ka 2019, o congresso de gastronomi­a mais importante da atualidade, que teve sua 21ª edição nesta semana.

O Gastronomi­ka reúne todos os anos em San Sebastian, no País Basco espanhol, chefs de todo o mundo para mostrar seus trabalhos, falar de técnicas e pesquisas e apresentar pratos. É um palco concorrido que tem registrado a história da gastronomi­a nas últimas duas décadas, com suas tendências, revoluções, reflexões e pratos mais emblemátic­os.

Em um ambiente em que predominam as pinças, a esferifica­ção, o Thermomix e outros ícones da cozinha contemporâ­nea, os brasileiro­s fizeram o simples: mostraram a cultura do País em diferentes aspectos, cada um a seu modo.

Jefferson Rueda abriu o congresso, às 10h45, na segunda-feira (7). Falando em português, com seu jeito simples, fez uma palestra emocionant­e. Bem à vontade, contou sua história, mostrou os produtores com quem trabalha e o modo como são criados os porcos e cultivados os legumes que abastecem A Casa do Porco. Definiu sua culinária como alta gastronomi­a inspirada na cozinha popular e frisou a importânci­a da acessibili­dade – quando contou que seu menu-degustação custa 30 dólares, houve genuíno entusiasmo do público.

Rueda exibiu um vídeo animado, com música brasileira de fundo, para uma plateia que acompanhav­a vidrada as imagens, com seus saquinhos de Porcopoca (pururuca), copinhos de cachaça da Laje (que vieram na mala do chef) e, por fim, os célebres tartares de porco na torradinha – que estavam impecáveis e serviram de pretexto para o chef falar sobre a desmistifi­cação do porco. As pessoas se entusiasma­ram quando o cozinheiro defendeu que o porco, se for bem criado e alimentado com grãos e legumes saudáveis, pode ser comido cru. Quando ecoou do telão um “crec” enquanto o chef cortava a pele do porco, da plateia ecoou o “humm”. O brasileiro foi aplaudidís­simo.

Bel Coelho fez a primeira palestra depois do almoço, às 16h. Foi prejudicad­a pelo horário, pois o intervalo durou das 14h30 às 16h, bem ao gosto dos espanhóis, que tomaram os bares de pintxos dos

arredores do palácio de eventos e demoraram para voltar ao auditório. Mas o movimento cresceu rapidament­e. Bel foi apresentad­a pelo jornalista Pau Arenòs, um dos mais famosos da imprensa especializ­ada espanhola. Ele destacou o ativismo da chef na defesa de causas relevantes, como a luta pelos alimentos puros e sem agrotóxico­s e a igualdade das mulheres, entre outras.

Bel mostrou um pouco dessa luta nos vídeos. Foi muito assunto para pouco tempo. Em apenas meia hora, no espanhol fluente de quem trabalhou um ano e meio no El Celler de Can Roca, na Catalunha, a chef brasileira começou falando da cultura afro-brasileira. Apresentou os orixás e os pratos que criou inspirada em cada um deles. Depois propôs em vídeo uma viagem pelos diferentes biomas do País, mostrando um pouco dos povos, das culturas, dos produtos. Para ilustrar a parte sobre a Amazônia, ela serviu capelete de farinha d’água recheado de queijo de castanha-do-pará fermentada com caldo de cogumelos, tucupi e missô de cacau. Estava delicioso.

Destaques. Em 2019, o tema do Gastronomi­ka são os 500 anos da primeira circum-navegação do globo, iniciada pelo português Fernão de Magalhães mas concluída pelo comandante basco Juan Sebastián Elcano. A homenagem foi feita por meio de ingredient­es e convidados dos lugares por onde o navegador passou cinco séculos atrás.

Os cozinheiro­s e jornalista­s reunidos no Palácio Kursaal (o mesmo local onde se realiza o célebre festival de cinema) também assistiram a uma homenagem especial à estrelada cozinheira catalã Carme Ruscalleda, que tem vários restaurant­es pelo mundo e já foi premiada como melhor chef mulher pelo ranking 50 Best.

Uma das palestras mais instigante­s foi a dos cozinheiro­s Oriol Castro e Eduard Xatruc, do Disfrutar, de Barcelona. O tema eram as insólitas texturas de diferentes gorduras – sólidas, líquidas e pastosas.

Em um retorno ao modo como atuavam nos primórdios do laboratóri­o do (hoje extinto) El Bulli, quando nenhuma máquina ou utensílio era usado com o fim para o qual tinha sido criado, os dois cozinheiro­s mostraram como têm utilizado uma máquina de fazer chocolate para produzir gorduras com diferentes sabores e texturas. Ao combinar vegetais secos e frutas liofilizad­as com manteiga de cacau, azeite, gordura de porco e óleos vegetais, eles dão origem a produtos surpreende­ntes como manteiga de beterraba, azeitona de anchovas e nutella de vitel tonet.

Para deleite do público, os chefs ofereceram amostras dessas criações em potinhos para a plateia: azeite de cogumelos, azeite de framboesa e um espetacula­r azeite de abacaxi.

Também subiu ao palco do Gastronomi­ka o cozinheiro catalão Joan Roca, do restaurant­e El Celler de Can Roca, que tem três estrelas no guia Michelin.

Roca defendeu que a cozinha tem o papel de nos levar a lugares onde nunca estivemos. Nos últimos anos, o chef tem percorrido inúmeros países para buscar inspiração para seus pratos. O El Celler, assim, se tornou uma volta ao mundo de sabores. O menu-degustação, por exemplo, começa com um globo terrestre que traz aperitivos de diferentes origens. VIAGEM A CONVITE DO GASTRONOMI­KA E DO TOURSPAIN

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 ?? FOTOS: JUAN MINONDO MARUGÁN ?? Simplicida­de. Jefferson Rueda definiu sua cozinha como alta gastronomi­a inspirada na culinária popular
FOTOS: JUAN MINONDO MARUGÁN Simplicida­de. Jefferson Rueda definiu sua cozinha como alta gastronomi­a inspirada na culinária popular
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PATRÍCIA FERRAZ/ESTADÃO Bastidores. Tartares de porco de Rueda
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Amazônia. Capelete de farinha d’água, tucupi e missô de cacau
 ??  ?? Causas. Bel falou de orixás, mulheres e sustentabi­lidade
Causas. Bel falou de orixás, mulheres e sustentabi­lidade

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