O Estado de S. Paulo

No universo da comida, tudo a interessav­a

- Neide Rigo, colunista do Paladar

“Neide, onde você está? Quero te ver só para um abraço e um beijo, minha orfãzinha de mãe, não é assim que você está se sentindo? Agora a mãe é só você, e ela vai aparecer nas suas mãos, no seu olhar, no jeito de ser, de rir, de não comer galinha com nome. O que mata um pouco a saudade é que a gente vai se transforma­ndo nelas. Neide, Neidinha, que todas as qualidades dela se grudem em você, e que aceite a morte dela como se aceita a vida.”

Nina tinha dessas gentilezas. As lindas palavras que recebi quando perdi minha mãe, agora dedico aos seus filhos Dulce, Silvio e Otávio. Minha mãe, Olga, se foi em 2016. Minha mãe postiça se despediu no domingo. Sentirei tanta falta. Quem escreve sobre comida, sabe: todos sonhamos em escrever como Nina Horta. Nina era única, e temos de nos contentar em reconhecer o tanto que aprendemos com ela. Comecei a gostar de escrever, mesmo, depois de conhecê-la. Era uma admiradora, como tanta gente que se emocionava com sua prosa, aguardava suas novidades e saía procurando karipata pelo Alto de Pinheiros só porque Nina disse que havia um pé do tempero indiano em sua calçada.

Por golpe de sorte, começamos a trocar e-mails após o Boa Mesa, em 1996. Um dia, acho que cansada de ler emails longos, me provocou: por que não começa um blog? Não, imagina – respondi. Mas fiquei matutando e, em 2006, comecei o Come-se. Nina fez toda a diferença na minha vida. Felizmente pude agradecê-la inúmeras vezes.

Com o tempo, ela confirmou que não havia assunto ruim no reino da comida. Tudo poderia virar boa prosa. Muitas vezes, escrevia sua coluna no domingo à noite para entregar na segunda de manhã. Não é que deixasse para última hora. Era uma semana matutando, estudando, conversand­o com amigos a respeito. Era curiosa. Lia tudo. Devia ser a melhor cliente da Amazon – aproveitav­a para comprar também bolsas, pulseiras e tigelinhas francesas, que colecionav­a. Lia rápido, muitos livros ao mesmo tempo, em muitos idiomas ao mesmo tempo, e às vezes assistindo à televisão, respondend­o e-mail e conversand­o – essa capacidade invejável cheguei a presenciar uma vez quando dormimos no mesmo quarto, numa pousada em Paraty, durante a Flip.

Vi também Nina abrir um Vega Sicília 2001 porque era o vinho que tinha para acompanhar uma pizza de abobrinha pedida por telefone. Noutra vez, fomos ao Fasano e o barman, julgando-a pelos cabelos brancos, perguntou se serviria um coquetel de frutas levinho, para ouvir de pronto: um uísque sem gelo, por favor. Fomos sozinhas a um boteco na Lapa numa tarde quente comer testículo de galo acompanhad­o de cerveja barata bem gelada. Nina sentia-se em casa em qualquer lugar. No universo da comida, tudo a interessav­a. Ernestina que era Nina não pediu comida de alma nos dias de despedida, porque tristeza não havia. Não quis saber de mingau, nem de purezinho. Quis mesmo mandioca com ketchup. E teve!

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