O Estado de S. Paulo

‘Economia criativa’ ou o mito da cultura lucrativa

- EUGÊNIO BUCCI JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP

Oprimeiro anúncio de que a produção de bens culturais se havia transforma­do numa indústria ordinária, banal, comum veio na forma de notícia ruim. Mais que ruim, agourenta. A expressão “indústria cultural”, formulada nos anos 40 do século passado por dois filósofos da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, deixou todo mundo mal na foto. A dupla acusou os “capitães” da indústria cultural de substituír­em o artista criador pelo “trabalho fungível” de anônimos, numa linha de montagem que endeusava o gosto do consumidor (que era gosto nenhum) e explorava a diversão das massas como um “prolongame­nto do trabalho”.

O negócio do entretenim­ento, então na sua adolescênc­ia, foi retratado como um engenho para alienar gente e assegurar o domínio do capital sobre as macacas de auditório. Ato reflexo, como recompensa pela má notícia que deram, Adorno e Horkheimer levaram a fama perpétua de pessimista­s rabugentos. Mesmo assim, como a filosofia dos dois era boa, a influência ficou. Não dá para pensar a cultura sem pagar pedágio a eles.

O segundo anúncio de que a produção de bens culturais se tinha transforma­do numa indústria veio na forma de euforia deslumbrad­a. Com excitação e ganância, a “economia criativa” foi proclamada, transforma­ndo em virtude e geração de riqueza o que a Escola de Frankfurt via como vício e manipulaçã­o.

Os pesquisado­res desse filão dizem que o conceito começou a ganhar corpo nos tempos da conservado­ra Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990. Ela gostava de ter um publicitár­io por perto. Chamou marqueteir­os competente­s para a sua campanha e depois para o seu governo. Quando precisava convencer o contribuin­te sobre isso ou aquilo, recorria ao advertisin­g. Com essa predileção, a dama de ferro teria dado projeção aos negócios da publicidad­e, das produtoras de vídeo e de outros ramos que, em conjunto, formam a tal economia criativa.

A coisa só vingou mesmo alguns anos depois, entre 1997 e 2007, quando o trabalhist­a Tony Blair ocupou a cadeira que tinha sido de Thatcher. Blair pôs a economia criativa no centro das políticas públicas que implemento­u no Ministério (department) de Cultura, Mídia e Esportes. Daí em diante, em diversos países os “gestores públicos” passaram a olhar para a cultura como quem consulta um business plan, e a expressão economia criativa – hoje entendida como um setor que envolve tudo o que se relaciona com internet, turismo, grandes eventos, como a Olimpíada, y otras cositas más – entrou pesado no linguajar dos governos.

Frankfurt entregou ao mundo um pesadelo claustrofó­bico com o nome de “indústria cultural”. Em resposta, a economia criativa nos devolveu a solução dos sonhos. Capitalism­o também é cultura – ou, melhor, só há cultura no capitalism­o. O movimento se adensou e se globalizou. Agentes públicos um pouco hipsters, que às vezes não usam gravata, situados num ponto equidistan­te (e improvável) entre a frieza contábil de Margaret Thatcher e a terceira via etérea de Tony Blair, passaram a professar o mantra de que cultura boa é cultura que gera impostos e financia o Estado. A onda pegou.

Foi quando o Brasil entrou no circuito. Tardia, mas consistent­emente, o conceito de economia criativa vem fincando pé, com ares novidadeir­os, em terras brasileira­s, num contexto que exige de nós um pouco de reflexão (crítica, por certo, mas não macambúzia). Há riscos no ar. Quando a Inglaterra, dona do British Museum, da BBC e do Channel Four, vislumbra uma dimensão também econômica em atividades culturais, é uma coisa. Quando o Brasil, que incinera florestas e museus, começa a vislumbrar na devastação cultural oportunida­des para o capitalism­o, e mais nada, a coisa é monstruosa­mente outra. Os burocratas pátrios deram de fazer contas esquisitas. Dizem que festivais de música são meritórios porque anabolizam as taxas de ocupação de hotéis e geram tributos. Cifras casuística­s aparecem para metrificar a relevância cultural, enquanto um ornitorrin­co microeconô­mico, um curiosíssi­mo “Ebitda” do setor público, se converte em indicador das artes.

Assim, a cultura é intimada a dar “retorno” para os cofres públicos, sendo tratada no mesmo nível que as corridas de Fórmula 1, a Marcha para Jesus, a Parada Gay ou o Círio de Nazaré. Ora, o que é cultura? Simples: cultura é o que faz tilintar o caixa da indústria do turismo. O resto é desperdíci­o. Se você quiser montar uma peça de teatro para espectador­es que morem na comunidade, esqueça. Eles não vão abarrotar a rede hoteleira. Se você quer uma biblioteca pública para moradores de rua, um abraço.

É claro que a produção cultural pode fomentar novos mercados de trabalho, e isso é muito bom – basta ver o sucesso do polo de indústria cinematogr­áfica que se abriu no Recife, um exemplo gritante de conciliaçã­o entre o êxito econômico e a conquista cultural. O problema da adoção um tanto replicante do conceito de economia criativa entre nós não está aí, mas em outro lugar: está na redução do vasto universo da cultura e das artes a um organismo cuja mensuração cabe numa planilha de Excel.

O Brasil já pagou caro, e ainda paga, pela tecnocraci­a na política econômica. As contas até que fecham na bottom line, mas, como gente não é uma constante matemática, a vida social desanda. Agora o Brasil pagará ainda mais caro pela tecnocraci­a cultural. Avizinha-se de nós a política cultural dos incultos, e olhe que essa é a parte “menos ruim” do tablado nacional: a outra parte, a “mais pior”, é representa­da pela política de destruição cultural dos brucutus, os tais que censuram filmes e campanhas publicitár­ias com “temática transgêner­o”, que arrancam dos exames de vestibular menções à ditadura militar e, além de não lerem Paulo Freire, não sabem fazer conta de mais ou de menos.

De um lado, a cultura vira negócio sem conteúdo em busca de lucros ilusórios e esdrúxulos. Do outro lado, vira cinzas fumegantes. Saudade de Theodor Adorno.

Avizinha-se a política cultural dos incultos, representa­da pela destruição dos brucutus

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