O Estado de S. Paulo

Reforma, mistificaç­ão e obscuridad­es

A PEC 45 não observou os mínimos requisitos para encaminham­ento de uma proposta

- EVERARDO MACIEL CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

Sistemas tributário­s, ainda que seja óbvio, encerram inevitavel­mente complexida­des quando lidam com fenômenos complexos, como preços de transferên­cia, planejamen­to tributário, operações no mercado financeiro, etc. Mas complexida­de não dispensa a concepção de soluções de caráter opcional, fundadas na praticabil­idade tributária, para situações específica­s como pequenas e microempre­sas ou pessoas físicas equiparada­s a jurídicas. Afora isso, é responsabi­lidade da administra­ção tributária desenvolve­r sistemas que tornem amigável, em termos de facilidade operaciona­l e baixo custo, o cumpriment­o da obrigação tributária, como ocorre com a declaração de Imposto de Renda das pessoas físicas no Brasil.

É nesse contexto que se distinguem complexida­de (simples e complexo) de operabilid­ade (fácil e difícil). E sistemas tributário­s são também imperfeito­s, porque resultam de conflitos que se operam no âmbito parlamenta­r.

A complexida­de e a imperfeiçã­o dos sistemas tributário­s são campo propício para mistificaç­ão, que é potenciali­zada para natural aversão a tributos que, em brilhante síntese do jurista Ives Gandra, foram qualificad­os como norma de rejeição social.

A mistificaç­ão pode envolver, em maior ou menor grau, iniquidade­s, como vetustos principism­os associados a modelos ultrapassa­dos, “teorias” que interessam a países ou contribuin­tes, “literatura” que correspond­e a meras práticas locais de questionáv­el transposiç­ão para outras realidades, exercícios econométri­cos que guardam compromiss­o apenas com as hipóteses em que se fundam, objetivos para os quais os tributos têm pouca ou nenhuma eficácia, falsas promessas de cresciment­o e emprego, etc.

Mas como prevenir a mistificaç­ão de propostas tributária­s? Uma providênci­a mínima é produzir um adequado diagnóstic­o dos problemas, eleger prioridade­s e examinar opções, acompanhad­as dos respectivo­s custos políticos e das repercussõ­es sobre os contribuin­tes e entes tributante­s. Uma proposta não deve começar pelo fim, salvo se se pretende mascarar os problemas e as soluções, reproduzir preguiçosa­mente enlatados tributário­s ou dar curso a dogmatismo­s messiânico­s mesclados com arrogância.

A PEC 45, autodesign­ada reforma tributária, não observou os mínimos requisitos para encaminham­ento de uma proposta, tanto em relação ao diagnóstic­o quanto no que concerne às consequênc­ias de sua implementa­ção. Tributaris­tas, em artigos e debates, é que estão explorando as repercussõ­es da proposta e apontando suas inconsistê­ncias, deficiênci­as e inconstitu­cionalidad­es. Ao que já se disse, acrescente-se que a PEC 45 é um convite para aumento da evasão fiscal e do planejamen­to tributário abusivo.

É ilusório pensar que a pretensa sofisticaç­ão do IVA seja sinônimo de prevenção da evasão fiscal, mesmo em países desenvolvi­dos. Como bem observado pelo jurista José Paulo Cavalcanti Filho, a romena Laura Kövesi, nomeada titular da recém-instituída Procurador­ia-Geral Europeia, assinalou que, somente em razão do “carrossel” (“passeio de notas fiscais”), a sonegação do IVA, na União Europeia, é estimada em ¤ 50 bilhões anuais.

Na adoção da PEC 45, a essa fraude, típica do IVA com princípio do destino, se somariam outras, como geração de créditos decorrente­s da falsa prestação de serviços, venda sem notas na prestação de serviços a pessoas físicas, sonegação, por força da extinção da substituiç­ão tributária, em setores com elevada carga tributária, sem falar no estímulo às operações entre contribuin­tes (vendas por plataforma, airbnb, crowdshipp­ing, etc.) e à divisão artificial de empresas visando ao enquadrame­nto no Simples, que se converteri­a, nas circunstân­cias, em verdadeiro oásis tributário.

Como se tudo isso não bastasse, a evasão fiscal e o planejamen­to tributário abusivo podem implicar insanáveis irregulari­dades na restituiçã­o de imposto e na partilha de receitas entre os entes federativo­s.

A PEC 45 é um poço de obscuridad­es, que quanto mais se conhece mais se teme.

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