O Estado de S. Paulo

O encanto sagrado das palavras; Poder é linguagem

Nada é mais poderoso do que as palavras, que têm imensa carga de interpreta­ções e nos permitem influencia­r nossas vidas e os outros

- N. SCOTT MOMADAY

Otermo “poder” está em todos os lugares no nosso mundo. Por isso, a expressão “inflação de palavras” vem à mente. Muito do que encontramo­s na imprensa escrita, na televisão e na publicidad­e diz respeito ao conceito de poder.

Mas o que é esse conceito? O que é poder? A verdade é que a palavra tem imensa carga de interpreta­ções. As definições são múltiplas; o dicionário lista um número incomum de significad­os. Certamente, o poder é o que é – aquilo que nos permite influencia­r, se não mesmo determinar, o curso de nossas vidas.

E é uma palavra.

As palavras são poderosas. Como escritor, minha experiênci­a me diz que nada é mais poderoso. A linguagem, afinal, é feita de palavras.

As palavras são símbolos conceituai­s; elas têm propriedad­es denotativa­s e conotativa­s. A palavra “poder” denota força, força física, resistênci­a. Mas conota algo mais sutil: persuasão, sugestão, inspiração, segurança.

Considere as palavras de Marco Antônio em Júlio César de Shakespear­e:

“Grita ‘Havoc!’ e deixa escapar os cães de guerra;

Que este ato sujo cheire acima da terra

Com homens carniceiro­s a gemer para o enterro”.

Pode ser difícil encontrar palavras mais carregadas de poder para incitar, inflamar, provocar violência e destruição. Mas há, naturalmen­te, outras expressões de poder em palavras.

Podem ser sobretudo pessoais. Podem alcançar nossas sensibilid­ades de maneiras diferentes e individuai­s, talvez porque têm associaçõe­s diferentes para nós. A palavra “Holocausto” me assusta, porque os sobreviven­tes dos campos de morte nazistas me falaram de seu sofrimento. Seja como for, a palavra é intrinseca­mente poderosa e perturbado­ra.

A palavra “filho” me encanta; a palavra “amor” me confunde; a palavra “Deus” me mistifica. Eu vivi minha vida sob o feitiço das palavras; elas empoderara­m minha mente.

As palavras são sagradas. Creio que são mais sagradas para as crianças do que para a maioria de nós. Quando eu pude dar meus primeiros passos no idioma, meu pai, indígena americano, membro da tribo Kiowa, me contou histórias da tradição oral Kiowa. Elas me transporta­ram. Elas me fascinaram e entusiasma­ram. Alimentara­m minha imaginação. Alimentara­m minha alma. Na verdade, nada significou mais para mim na formação da minha visão do mundo. Compreendi que a história é o motor da linguagem, e que as palavras são a medula da linguagem.

Vários anos atrás, estava em um palco com o paleoantro­pologista queniano Richard Leakey, em Chicago. Falávamos sobre o tema das origens, especifica­mente a origem dos seres humanos. O senhor Leakey sustentou que nos tornamos humanos quando nos tornamos bípedes, e seu argumento era convincent­e. Mas discordei: com certeza nos tornamos humanos quando adquirimos linguagem, um ponto de vista que continuo a defender.

A linguagem é o que separa a nossa espécie de todas as outras. É, como entendemos o termo, uma invenção humana, um sistema de comunicaçã­o baseado em sons e símbolos – palavras, faladas e escritas. O cientista e escritor Lewis Thomas, em seu livro The Fragile Species, especula sobre a origem da linguagem. As pessoas estavam vivendo em cavernas, ele escreveu, e um dia duas comunidade­s se uniram. Surgiu uma massa crítica de crianças. As crianças brincaram durante todo o dia e, no final desse dia, tínhamos uma linguagem.

Parece incrível que uma criança se aproprie da linguagem aos 2 ou 3 anos de idade, mas isso acontece no curso normal dos acontecime­ntos. Acontece, suspeito, porque as crianças gostam de brincar com as palavras, e não têm medo delas. Só com o tempo passam a conhecer o espectro do poder nas palavras, que podem ferir e exaltar, promover a guerra e a paz, expressar ódio e amor. Em meu tempo como professor de inglês e literatura americana, tive a sorte de dar cursos de tradição oral de nativos americanos. Há uma fórmula nessa tradição que diz: “No começo havia a palavra, e ela era falada”.

Pode ser que o poder essencial da linguagem seja concretiza­do pela comunicaçã­o boca a boca. A tradição oral é incrivelme­nte mais antiga do que a escrita, e requer que levemos as palavras mais a sério. Não se deve desperdiça­r palavras. Deve-se falar com responsabi­lidade, escutar com atenção e lembrar-se do que se diz.

Há uma receita navajo para pacificar um inimigo. Assim diz:

Ponha os pés no chão com pólen. Abaixe as mãos com pólen. Abaixe a cabeça com pólen. Então seus pés são pólen;

Suas mãos são pólen;

Seu corpo é pólen;

Sua mente é pólen;

Sua voz é pólen.

A trilha é linda.

Fique imóvel.

Isso sim é poder.

N. Scott Momaday

AUTOR, POETA E DRAMATURGO. VENCEU O PRÊMIO KEN BURNS DE TRADIÇÃO AMERICANA 2019. SEU ROMANCE HOUSE MADE OF

DAWN RECEBEU O PRÊMIO PULITZER DE FICÇÃO EM 1969.

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