O Estado de S. Paulo

‘NOSSO JUDICIÁRIO É O MAIS DEMANDADO DO MUNDO’

Para Dias Toffoli, se toda disputa acaba no Supremo é porque outros meios de resolver conflitos fracassara­m

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O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, não falou dos temas que inflamavam o mirrado mas barulhento grupo de manifestan­tes do lado de fora do Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, onde ocorreu o Estadão Summit Brasil – O que é o poder?. Nada disse sobre a prisão após sentença em segunda instância, tema cuja votação deve ser retomada hoje no STF. Tampouco explicou sua decisão de suspender investigaç­ões de possíveis crimes financeiro­s que recorram, sem autorizaçã­o judicial, a dados do antigo Coaf, atual Unidade de Inteligênc­ia Financeira (UIF). Ofereceu, porém, uma visão de longo curso sobre o papel que o Judiciário e o STF exerceram na história – um papel que se aprofundou e ampliou com a Constituiç­ão de 1988. A seguir, os momentos marcantes da fala de Toffoli.

Poder moderador. “(Tentar

compreende­r) o Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário como poder moderador, sem contextual­izar a história é absolutame­nte inviável. Nós fazemos mudanças muito rápidas. Veja, exercer o poder no Brasil, na esfera nacional, será fácil? O primeiro imperador abdicou, o segundo foi deposto e morreu no exílio, o primeiro presidente da República renunciou. (...) Antes da Constituiç­ão de 1891, foi instalado, por decreto, em 1890, o Supremo Tribunal Federal. Qual que foi a ideia do STF? Foi, a partir do modelo norteameri­cano, trazer (para o Brasil) a possibilid­ade do controle da constituci­onalidade, pois ele não existia anteriorme­nte no Supremo Tribunal de Justiça do Império. (O STJ) orbitou no modelo francês, com um Judiciário sem poderes de decidir o que é constituci­onal, e um poder moderador na figura da coroa. (...) Pois bem, quando se cria o Supremo, na República, é para quê? Para ser o mediador dos conflitos da Federação. Só para dar um exemplo de questão federativa (atual), entre tantos outros: a guerra fiscal, onde vai parar? No Supremo. Questão relativa a relações entre poderes, à competênci­a (de cada

poder)? Quem tem que dar a última palavra é o STF.”

Ministério Público. “Mas, na prática, quem exerceu o poder moderador na República foram as Forças Armadas, que se sobrepuser­am ao Judiciário. Em 1964, ao permanecer no poder, as Forças Armadas sofreram desgaste nacional. (...) Pois bem, na Constituin­te de 1988, uma série de direitos foram trazidos para o texto constituci­onal. Então, colocaram todo tipo de direitos na Constituiç­ão, sem colocar as previsões de onde viriam. Nós temos que trazer instrument­os jurídicos para que isso (os ideais da Constituiç­ão) se torne uma realidade. Que instrument­os? Em primeiro lugar: um Ministério Público absolutame­nte autônomo, sem influência­s do Poder Executivo. O Ministério Público, em geral, em todo mundo, só cuida da esfera penal. Não cuida, por exemplo, de meio ambiente. Não é este ouvidor da sociedade como um todo que nós temos no Brasil hoje. Esse é um fruto da Constituiç­ão de 1988.”

Sob os olhos da Nação. “Eu não acordo de manhã, nem meus colegas acordam de manhã e falam: ‘ hoje eu quero resolver os problemas X, Y e Z’. Só que esses problemas são colocados no Supremo (...). O Poder Judiciário antes da Constituiç­ão de 1988 era um Poder Judiciário meio na estufa. Ele resolvia um caso individual. Resolvia a briga de casal, a pensão, e continua resolvendo (essas questões) hoje. Com o modelo da Constituiç­ão de 1988, os grandes problemas da nação brasileira do ponto de vista político, econômico, social, cultural, de costumes, passaram a ser levados ao Poder Judiciário e ao STF. O Poder Judiciário pós1988 passa a ser muito mais demandado. Do ponto de vista do estado democrátic­o de direito, é bom que hoje as pessoas saibam que existe o STF, saibam quem são os onze ministros, venham fazer protestos, desde que dentro da legalidade. É bom que faça parte da consciênci­a da Nação a existência do Poder Judiciário.”

Sobrecarga das cortes. “Agora, quando tudo vai parar no Judiciário, isso significa o fracasso de outros meios de resolução de conflito. Criaram-se agências reguladora­s, modelo que veio a partir do governo Fernando Henrique e das reformas constituci­onais de privatizaç­ão de 1995. As agências são criadas para regular o mercado dos meios de comunicaçã­o, dos transporte­s, da área da aviação, ferrovias, rodovias etc. Mas decisões nas agências reguladora­s (também são levadas) para o Judiciário. Então há uma crise de confiança no Judiciário ou uma crise de confiança nas instituiçõ­es e organizaçõ­es que precisam resolver os conflitos? Em um país que tem uma Constituiç­ão com mais de 300 artigos, com mais de 100 emendas constituci­onais, só aumenta o litígio. (...) No ano passado, nós decidimos, colegiadam­ente, 14 mil processos entre o plenário e as duas turmas. Não há Suprema Corte que julgue tanto. O Judiciário (brasileiro) é o mais demandado do mundo. Cada juiz brasileiro decide por ano 1700 processos. Dá uma média de oito processos por dia útil.”

Reforma tributária. “O Judiciário deveria ser usado para a última solução, a última razão a ser chamada. (...) Em matéria tributária, já falei com Paulo Guedes, falei com Rodrigo (Maia), falei com Davi (Alocumbre) que tem que diminuir o peso da Constituiç­ão. Quer fazer uma reforma tributária que funcione? Retire dois, três princípios da Constituiç­ão. Com isso, nenhuma reforma tributária vai parar no Supremo.(... ) Estamos julgando casos (em matéria tributária) de 20, 30 anos. Em maio, nós terminamos de julgar o Plano Real – 25 anos depois, (julgamos) se o Plano Real era constituci­onal ou não.”

As corporaçõe­s. “Nós não temos uma elite nacional. A burocracia ocupou esse espaço. Infelizmen­te, os partidos políticos não fazem projetos de Nação. Infelizmen­te, as universida­des não fazem projetos de nação. A sociedade civil faz projetos setoriais, como na área da infância, da saúde, da educação. Quem ocupa esse vazio? As corporaçõe­s. Por quê? O interesse do sistema financeiro (...) (é) o mesmo do Oiapoque ao Chuí. E então tem força, pois é um setor que atua unido. Servidor público municipal, estadual, do Distrito Federal e da União têm o mesmo interesse. Então, eles conseguem ter musculatur­a. (...) É por isso que o parlamento brasileiro acabou se institucio­nalizando muito mais em frentes parlamenta­res que em partidos políticos.”

Nova era. “Mas vivemos um quadro em que estamos conseguind­o, pelo diálogo, pela força da sociedade, enfrentar o domínio das corporaçõe­s. A reforma da Previdênci­a é um exemplo disso. Agora vamos enfrentar a reforma administra­tiva, a reforma tributária, o pacto federativo. (...) Não estou aqui para deslegitim­ar corporaçõe­s ou frentes de atuação parlamenta­res. Estou dizendo que criar um projeto de nação é muito mais complexo. É preciso ter muito mais diálogo – uma articulaçã­o entre diferentes pessoas que pensam diferente. Jair Bolsonaro, Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Dias Toffoli, Raquel Dodge até outro dia, hoje Augusto Aras, são pessoas que querem se sentar juntas para, com apoio das instituiçõ­es de que estão à frente e com a compreensã­o da sociedade, avançar no desenvolvi­mento do País.”

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ILUSTRAÇÃO DE FARREL SOBRE FOTO DE FELIPE RAU/ESTADÃO Reforma. Dias Toffoli sugere que se tire da Constituiç­ão itens sobre matéria tributária para evitar que os problemas da área acabem todos parando no STF
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ANDRÉ DUSEK / ESTADÃO - 5/10/1988
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REVISTA ILLUSTRADA Arbitragem. O poder moderador de D. Pedro II, em charge do século 19, e a proclamaçã­o da Constituiç­ão de 1988: resolução de disputas da sociedade

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