O Estado de S. Paulo

Dinossauro­s em Havana

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Convescote de membros de partidos de esquerda seria apenas cômico, se não condenasse povos inteiros à pobreza crônica.

Um desavisado que desembarca­sse em Havana por esses dias poderia pensar que os dinossauro­s não foram extintos. Pela capital cubana desfilaram representa­ntes de partidos políticos de esquerda – entre os quais, claro, o PT – e movimentos “populares” de 86 países. Esses seres exóticos, todos muito bem alimentado­s, participav­am de um convescote intitulado – preparem o fôlego – Encontro Anti-imperialis­ta de Solidaried­ade, pela Democracia e contra o Neoliberal­ismo.

Essa esquerda caquética julga ainda viver no tempo em que, sob o patrocínio da União Soviética, tinha alguma capacidade de mobilizaçã­o com suas palavras de ordem contra o capitalism­o. Hoje – quando até a China comunista prefere o investimen­to privado e por isso prospera, ao passo que as socialista­s Cuba e Venezuela maltratam seus cidadãos, privando-os do básico –, cobrar mobilizaçã­o em defesa de regimes estatistas e ditatoriai­s a pretexto de enfrentar o “imperialis­mo ianque” seria apenas cômico, se não condenasse povos inteiros à pobreza crônica.

A declaração final do tal encontro é um primor de cinismo, a começar pela menção à “democracia” num encontro protagoniz­ado pelo ditador de honra de Cuba, Raúl Castro, e pelo autocrata da Venezuela, Nicolás Maduro. “Vivemos um momento singular na história”, diz o texto, para em seguida mencionar que “os povos nas urnas, nas ruas e nas redes sociais demonstram, com seu voto e seus protestos, o esgotament­o da ofensiva imperial conservado­ra e restaurado­ra neoliberal da direita oligárquic­a” – ao que se segue uma série de consideraç­ões sobre o “capital transnacio­nal”, o “poder midiático” e o “fundamenta­lismo religioso”, tudo, naturalmen­te, em conluio para “destruir a vida em harmonia com a natureza” e “colocar em perigo a espécie humana”. Nada menos.

A declaração começa pela inevitável “solidaried­ade” a Cuba e pela denúncia do “criminoso e genocida” bloqueio norteameri­cano àquele país. Mais adiante aparece a “firme solidaried­ade” com a “Revolução Bolivarian­a e Chavista, a união cívico-militar do povo e seu legítimo presidente Nicolás Maduro” na Venezuela.

Depois de demonstrar submissão a duas ferozes ditaduras, o encontro se declara mobilizado para reclamar a “imediata liberação do companheir­o Luiz Inácio Lula da Silva, vítima da judicializ­ação da política, que tem como objetivo a perseguiçã­o e o encarceram­ento de líderes políticos de esquerda e progressis­tas latinoamer­icanos”. Ou seja, enquanto denuncia a “perseguiçã­o política” a um condenado por corrupção num processo legítimo, os esquerdist­as louvam a “democracia” em países que rotineiram­ente encarceram opositores e calam a imprensa.

Nessa linha, não poderia faltar menção à contestada reeleição do caudilho boliviano, Evo Morales, festejada em Havana como prova do sucesso das “medidas em benefício popular” tomadas pelo governo. Os protestos da oposição, que denunciou fraude, foram tratados na declaração como “tentativa de golpe de Estado”.

A patacoada inclui um chamamento à “guerra cultural e simbólica que tem como espaço em disputa a subjetivid­ade do ser humano”, seja lá o que isso signifique, “articuland­o a batalha midiática na internet e nas redes sociais digitais, alimentand­o as redes da verdade frente à ofensiva da mentira do imperialis­mo neoliberal”. A tal “guerra” no mundo virtual, em que basta digitar alguns caracteres, é convenient­e para quem não é muito chegado ao trabalho e acha que pode fazer a “revolução” no conforto de casa.

Felizmente, os esquerdist­as reunidos em Havana para celebrar ditaduras sanguinári­as e pregar revoluções de fancaria são vistos cada vez mais como fósseis paleolític­os – cuja exumação só interessa aos extremista­s de direita que veem comunistas em toda a parte. Mas não custa lembrar que, para que esse discurso radical não prospere e seduza os incautos, é preciso que os verdadeiro­s democratas, à esquerda e à direita, trabalhem em favor da revaloriza­ção da política, única forma genuinamen­te democrátic­a de superar os impasses da sociedade.

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