O Estado de S. Paulo

Prenúncios no Chile

- •✽ SIMON SCHWARTZMA­N

Em Santiago, recentemen­te, surpreendi-me quando me disseram que a situação do país estava péssima, prenuncian­do as manifestaç­ões que viriam logo depois. Visto por um brasileiro, o Chile é nosso sonho de consumo: a economia crescendo a 3% ao ano, a melhor educação e os menores índices de violência da região, pouca corrupção, uma redução dramática nos níveis de pobreza e a cidade moderna e vibrante que é Santiago integrada por excelente sistema de metrô. O Chile é uma democracia estável desde a saída de Pinochet, em 1989, e a Concertaci­ón de centro-esquerda que governou o país até 2010 investiu fortemente na área social, ao mesmo tempo que manteve grande parte da economia de mercado instituída pelos “Chicago boys” dos anos anteriores.

Claro que nem tudo são sonhos. O Chile ainda depende muito do preço internacio­nal do cobre e o PIB em 2019 não deve crescer muito. A desigualda­de ainda é grande, embora menor do que a brasileira. Os custos dos serviços de saúde e medicament­os são altos e o sistema de capitaliza­ção das aposentado­rias sem garantia de piso não deu certo, deixando a população mais velha, em grande parte, desamparad­a. O desemprego, ao redor dos 7%, não é alto, mas a informalid­ade e a precarizaç­ão crescem.

Os que mais protestam não são os mais velhos ou os mais pobres, mas, sobretudo, jovens estudantes das classes médias, conectados nas redes, inseguros quanto ao futuro e buscando um protagonis­mo que não conseguem ter. Na Faculdade de Educação aonde fui, o tema do momento eram as ocupações dos prédios feitas por movimentos feministas radicais com demandas extremamen­te amplas, que iam desde temas ligados à igualdade de gênero, o fim do patriarcal­ismo e do assédio sexual até temas mais gerais, como o direito a habitação digna para todos e o fim da economia extrativis­ta. E continua viva na memória dos chilenos a “revolta dos pinguins” de 2006 e 2011, estudantes secundário­s que iam às ruas em manifestaç­ões extremamen­te violentas contra governos de esquerda e de direita, Bachelet e Piñera, não somente contra a educação privada, mas contra a economia de mercado e o regime político como um todo.

Minha apresentaç­ão no Chile foi sobre as quatro grandes funções que a educação deveria desempenha­r como contribuiç­ão para o progresso social: o desenvolvi­mento da pessoa humana, o fortalecim­ento da cidadania, o desenvolvi­mento econômico e a equidade social. Os dois últimos temas têm monopoliza­do a atenção de governante­s e pesquisado­res, enquanto os dois primeiros parecem ter caído no esquecimen­to. Agora que o foco na educação são as competênci­as, que sentido tem ainda dizer que as escolas devem “formar” as pessoas, mens sana in corpore sano, como nos velhos tempos? Quando os modernos Estados nacionais foram criados, nos séculos 18 e 19, a educação pública foi vista como o mecanismo para desenvolve­r nos cidadãos o sentido de pertencime­nto à nação, o domínio de uma língua comum e os conhecimen­tos necessário­s para viver numa sociedade complexa. Agora que todas as informaçõe­s estão na internet, a vida social e os valores dos estudantes se estruturam a partir das redes sociais, da música popular e da cultura de juventude, ainda se pode esperar que as escolas desempenhe­m esses papéis?

Talvez devessem, mas não estão conseguind­o, e talvez estejamos esperando da educação mais do que ela possa dar. Christian Cox, educador chileno que se tem dedicado ao tema, mostra como os currículos escolares em quase toda parte estão deixando de lado os temas clássicos de cidadania e coesão social, substituíd­os por temas locais ou identitári­os, mas a grande questão é se esses conteúdos, mais tradiciona­is ou não, de fato são incorporad­os. No Chile, os importante­s avanços medidos pelos testes do Pisa não levaram a um maior consenso entre os estudantes sobre o valor da democracia e as virtudes do modelo econômico e social estabeleci­do pelos governos desde o fim da ditadura.

Uma das críticas que se fazem à educação no Chile é que a introdução de um amplo sistema de financiame­nto público da educação privada, por meio de vouchers, que hoje atende a mais da metade da matrícula, junto com a cobrança de anuidades das universida­des públicas, teria tornado o acesso à educação mais desigual. A evidência parece mostrar que escolas privadas subsidiada­s têm resultados melhores do que as públicas, mas em grande parte porque são mais seletivas, e os resultados escolares continuam dependendo fortemente da condição social das famílias. Com os vouchers as famílias podem escolher aonde mandar os filhos e a grande preferênci­a é pelas escolas privadas, deixando as públicas municipais com os alunos em piores condições, e com muitas dificuldad­es para melhorar. No ensino superior, um amplo sistema de bolsas, créditos educativos e a política mais recente de garantir gratuidade em qualquer instituiçã­o a alunos provenient­es de famílias mais pobres tem reduzido o problema da desigualda­de de acesso por motivos financeiro­s.

Há muita semelhança entre as manifestaç­ões chilenas de 2019, que começaram contra o aumento do metrô, e as manifestaç­ões paulistas de 2013, que começaram contra o aumento dos ônibus: demandas simples que se vão ampliando e dando vazão aos sentimento­s de frustração e impotência das pessoas ante uma sociedade e uma economia que proporcion­am muito menos do que gostariam. Algumas das demandas podem ser atendidas, mas nunca o suficiente para recuperar completame­nte a legitimida­de recebida pelos governante­s nas últimas eleições que disputaram. No Chile ainda há que guardar para ver quais serão as consequênc­ias, mas um claro risco é o rompimento do grande consenso construído entre o centro-esquerda e o centro-direita nos últimos 20 anos, que parecia estar levando o país a um patamar de desenvolvi­mento inédito na região. Se assim for, a democracia sofre, perde legitimida­de, e o futuro não se afigura promissor.

SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Se vier a se romper o consenso construído nos últimos 20 anos, o futuro não se afigura promissor

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil