O Estado de S. Paulo

Meio ambiente, clima e soberania nacional

- •✽ LOURDES SOLA E EDUARDO VIOLA

Aquestão climático-ambiental , como se sabe, é uma das definidora­s do nosso tempo. Dessa perspectiv­a, 2019 representa para o Brasil o que os teólogos qualificav­am de annus horribilis: Brumadinho em janeiro, desmatamen­to e queimadas extraordin­árias na Amazônia de julho a setembro; derramamen­to de óleo nas praias e reservas da vida marinha do Nordeste. Além de suas dimensões humanitári­a e civilizató­ria, de seu impacto internacio­nal, esses episódios trazem à luz as fraturas, agora expostas, da nossa economia política.

Quer dizer, o conflito de interesses que compõe a atual coalizão governamen­tal; os déficits de nossos instituiçõ­es de controle e de prestação de contas; a preeminênc­ia das ideias retrógrada­s, hostis ao saber científico e pautadas por um conceito de soberania limitado. Embora tenham caráter sistêmico, é a questão climático-ambiental que imprime sentido de urgência à melhor compreensã­o dos desafios envolvidos também da perspectiv­a das ciências sociais. Isso obriga a dar conta das contradiçõ­es e dos paradoxos do quadro atual. É esse o propósito deste artigo, parte de um projeto de pesquisa abrangente sobre as conjuntura­s críticas do século 21 no País.

Brumadinho, que nada tem que ver com o atual governo, na ocasião recém-empossado, evidenciou a escala da promiscuid­ade entre a Vale e os órgãos reguladore­s e fiscalizad­ores. Diante da tragédia, a atenção da opinião pública dirigida à questão ambiental, até então declinante em decorrênci­a das crises econômica e política (fenômeno comum em outros países), ganhou novo impulso. E com ela, a percepção dos riscos associados à exploração de minérios, as demandas por adoção de tecnologia­s mais adequadas e a contestaçã­o legal das relações simbiótica­s entre o setor privado e os órgãos oficiais.

O recrudesci­mento do desmatamen­to na Amazônia suscita outras questões, a começar pela noção de soberania implícita no discurso e nas práticas do governo – em contraste com a que caracteriz­ou a postura do Estado brasileiro desde início dos anos 1990. Ao assumir a responsabi­lidade de proteger um ecossistem­a que tem impacto no clima global, o Estado brasileiro marcava sua adesão a um conceito de soberania pautado pela emergência dos novos problemas globais: mudança climática, crime transnacio­nal, risco de pandemias, etc. A partir de 2005, as políticas ativas de redução de desmatamen­to e de implantaçã­o do Estado do Direito na região buscaram incorporar esse conceito. Ao mesmo tempo, buscava-se cumprir as tarefas, ainda pendentes, associadas à concepção de soberania adotada pelas democracia­s no século passado: controle do território, vigência do império da lei em toda a sua extensão, monopólio da violência. Nesse contexto, não há como desconhece­r a complexida­de de um dos principais desafios de governança democrátic­a hoje: levar a cabo, simultanea­mente, as políticas que garantem o exercício da soberania nacional nas duas acepções, a do século 20 e a do 21.

O ideário do governo Bolsonaro, seu discurso negativo sobre a proteção do ambiente, a narrativa negacionis­ta dos consensos científico­s sobre a mudança climática combinaram­se à política de enfraqueci­mento dos órgãos ambientais. Trata-se de uma síndrome regressiva aos tempos em que o Brasil se convertera em vilão da causa ambiental. E de incentivo ao desmatamen­to por grupos criminosos que operam na região há décadas: com a cumplicida­de dos seus beneficiár­ios, os setores pautados pela concepção de desenvolvi­mento que caracteriz­ou a modernizaç­ão social e ecologicam­ente ultraconse­rvadora do Brasil rural. No âmbito internacio­nal, é sintomátic­o o fato de que as críticas de atores estatais e não estatais derivam do mundo democrátic­o, enquanto o governo chinês se revelava solidário – escudado como é numa concepção tradiciona­l da soberania , que o protege das críticas às sistemátic­as violações de direitos humanos.

A deterioraç­ão da Amazônia , porém, suscita questões mais abrangente­s sobre os processos transforma­dores que caracteriz­am a nossa economia política. Quais as bases sociais e os critérios de legitimaçã­o que servem de suporte às políticas em curso, de um governo eleito legitimame­nte? Até que ponto as preferênci­as da sociedade brasileira autorizam a narrativa climática negacionis­ta, em contraposi­ção ao papel que exerceu no período anterior às crises econômica e política, quando setores fundamenta­is das elites e da opinião pública alavancara­m a adesão do Estado brasileiro ao conceito de soberania do século 21 – e também o desempenho eleitoral de Marina? Como situar uma retórica que está na contramão dos interesses economicam­ente dominantes do capitalism­o brasileiro, particular­mente os do agronegóci­o? Serão suficiente­s tais desastres para reverter a atitude tolerante do núcleo dinâmico do capitalism­o brasileiro à política ambiental de Bolsonaro?

As críticas europeias ativaram uma reação nacionalis­ta entre os militares, em contraste com os avanços desses atores na compreensã­o da questão climático-ambiental, com a sua presença solidária na região e com a participaç­ão ativa de seus quadros na contenção de outros desastres, como o da Amazônia Azul. Será isso um indicador de mudança substantiv­a, moldada por um soberanism­o datado?

Para registrar nosso viés de esperança, há sinais de que as tragédias ambientais deste ano contribuem para resgatar as preferênci­as da sociedade por uma concepção de soberania compatível com os desafios do século 21 – aquela que mira também o interesse geral da humanidade. A intensa mobilizaçã­o das energias sociais, nas várias frentes que participam do combate ao derramamen­to de óleo no Nordeste – voluntaria­do, governador­es, Ministério Públicos locais, comunidade científica, ONGs, militares – atesta isso.

Os desastres deste ano bastarão para reverter a tolerância à política ambiental de Bolsonaro?

RESPECTIVA­MENTE, CIENTISTA POLÍTICA, PESQUISADO­RA SÊNIOR DA USP, FOI PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIO­NAL DE CIÊNCIA POLÍTICA; E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIO­NAIS DA UNIVERSIDA­DE DE BRASÍLIA

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