Alemães discordam do significado de reunificação
Trinta anos após queda do Muro de Berlim, 47% dos alemães-orientais se identificam primeiro como sendo do leste, proporção mais alta que na época do colapso do comunismo
Em 9 de novembro de 1989, enquanto o Muro de Berlim caía, Hans-Joachim Binder trabalhava na mina de potassa de Bischofferode, cidadezinha da Alemanha Oriental. Ele não tinha ideia do que estava acontecendo. O primeiro sinal foi quando a maioria dos colegas desapareceu para checar o que se passava na fronteira com a Alemanha Ocidental, a dez minutos de carro. Só três voltaram para terminar o plantão.
Um ano depois, a Alemanha estava reunificada. Mas, diferentemente de qualquer outro país já libertado da tirania, a população inteira ganhou cidadania em uma rica democracia. Em um gesto de boas-vindas, o chanceler ocidental, Helmut Kohl, transformou a poupança sem valor dos orientais em moeda forte, na absurda cotação de um marco alemão ocidental por um oriental.
Mais de 1 milhão de orientais aproveitaram a liberdade para se mudar para o lado ocidental, onde a maioria prosperou. Mas, para os que ficaram, os últimos 30 anos têm sido uma mistura de progresso e desapontamento. O mal causado por quatro décadas de opressão não pode ser desfeito da noite para o dia. Uma população crescida em uma sociedade na qual a iniciativa era esmagada teve de se adaptar repentinamente ao capitalismo. Muitos não conseguiram. Binder foi demitido, como milhares de outros que antes tinham empregos seguros, monótonos e improdutivos bancados pelo Estado.
Não houve guia para a absorção dos orientais. Políticas sempre foram alvo de discussões, mas a surpresa é a velocidade com que os debates foram retomados. Jornais e revistas estão cheios de reavaliações da reunificação.
Nunca antes a Alemanha debateu o tema com tal vigor. Por quê?
Para muitos, o debate subiu de tom quatro anos atrás, com a crise dos imigrantes. Petra Köpping, ministra da Integração da Saxônia, um dos cinco Estados orientais estabelecidos com a reunificação, diz que, quando tenta explicar a seus eleitores por que o Estado ajuda refugiados, alguns pedem que, primeiro, o governo complete a integração. Muitos orientais reclamam de recursos para os recém-chegados quando eles próprios se sentem abandonados.
“A crise dos refugiados só desencadeou uma mudança mais profunda”, diz Christian Hirte, comissário do governo para o leste da Alemanha. Uma ideia, levantada pela chanceler Angela Merkel, é que o leste vive uma experiência comparável à da Alemanha Ocidental
em 1968, quando os filhos forçaram os pais a prestar contas de suas atividades no período nazista. Agora, jovens orientais cobram explicações sobre o que ocorreu na reunificação. “Feridas antigas foram escondidas, porque as pessoas buscavam um lugar na nova sociedade”, diz Steffen Mau, da Universidade Humboldt.
“Após 1990, a vida mudou para os alemães-orientais”, diz Markus Kerber, secretário do Ministério do Interior. Era inevitável o sofrimento no curto prazo. A produtividade média no leste era 30% da ocidental. A decisão de Kohl de dar ao marco oriental a mesma cotação do ocidental tirou da competição empresas orientais do dia para a noite. As que sobreviveram lutaram com as regras ocidentais para importar no atacado. Segundo estimativa, 80% dos orientais ficaram sem emprego.
Köpping diz que hoje os alemães orientais ocupam apenas 4% dos empregos de ponta no leste. Muitos pagam aluguel a ocidentais, donos dos imóveis disponíveis. “Às vezes, os orientais se sentem governados por outros, não por si mesmos”, diz Klara Geywitz, líder social-democrata.
Os orientais também não conquistaram o poder – Merkel é uma exceção. Preocupando-se pouco com suas origens, ela ultimamente começou a refletir sobre o legado da reunificação. “Todos precisamos entender que, para muitos orientais, a unidade nem sempre foi uma experiência positiva”, disse.
Outro obstáculo é que os alemães veem a reunificação de modo diferente. Metade considera que o leste virou um sucesso. Dois terços dos orientais discordam. Recentemente, surgiu a ideia de que o leste era celeiro de neonazistas, impulsionado pelo sucesso local da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita. Notícias do leste são com frequência lidas como despachos de uma terra exótica, onde a extrema direita marcha nas ruas ou bate em imigrantes.
Tais avaliações ignoram os avanços do leste. Os cidadãos foram libertados da humilhação, podem escolher seus líderes, dar opinião e viajar. Economicamente, a vida melhorou. Algumas regiões orientais têm padrões ocidentais. A movimentação de US$ 2,2 trilhões entre oeste e leste reduziu o abismo da infraestrutura. Os salários no leste são 85% dos pagos no oeste e o custo de vida é mais baixo. Segundo o instituto Allensbach, 53% dos alemães do leste estão satisfeitos com a situação econômica pessoal, mesma porcentagem do oeste.
Mas talvez a comparação mais correta seja com países que se livraram do comunismo. O crescimento per capita da velha Alemanha Oriental superou o da maioria dos países da Europa Oriental. No entanto, se os orientais nem sempre se entusiasmam com a sorte é porque a referência tem sido Hamburgo e Munique, não Bratislava ou Budapeste.
Implícito na promessa de reunificação estava o compromisso de que os orientais teriam o que por tanto tempo invejaram – pacotes de café e doces, bens acessíveis apenas aos que dispunham de moeda forte. Em 1990, Kohl prometeu “paisagens paradisíacas”, mas entregou apenas desindustrialização e desemprego. “Quando Kohl voltou, quatro anos depois, foram precisos guarda-chuvas para protegê-lo de ovos e tomates”, lembra Kurt Ulrich Mayer, membro da União Democrata-cristã (CDU), partido de Kohl, na Saxônia.
Para muitos, o melhor modo de se chegar ao nível de vida ocidental foi se mudar para o oeste. Mais de um quarto de orientais entre 18 e 30 anos fez isso. A imigração em massa de jovens causou uma queda de nascimentos e um número desproporcional de idosos. Desde 1990, o número de pessoas com mais de 60 anos aumentou para 1,3 milhão, mesmo com a população diminuindo 2,2 milhões.
O compromisso de igualdade parece inatingível. O governo tenta ajudar, mas o investimento não conteve o declínio demográfico. O quadro é mais otimista em algumas cidades: Potsdam, Jena
e Dresden têm centros industriais e moradia barata. Leipzig vem crescendo há anos. Mas esse movimento tem tirado pessoas capacitadas de pequenas cidades que lutam para sobreviver. “Identidade é a chave para se entender o leste da Alemanha”, diz Franziska Schubert, deputada da Saxônia.
Hoje, 47% dos alemães-orientais se identificam primeiro como sendo do leste e, depois, da Alemanha, uma proporção mais alta que na época da reunificação. A AfD tem explorado essas particularidades. Com slogans como “O leste volta a se levantar”, o partido teve mais de 20% dos votos na Turíngia, em outubro. Mas a identidade oriental não serve apenas para preservar extremos. Muitos jovens orientais desenvolveram uma identidade própria após serem recebidos com zombaria do outro lado.
Matthias Platzeck, chefe da comissão do 30.º aniversário da reunificação, espera o surgimento no leste de uma saudável autoconfiança, calcada em histórias de sucesso. O lema da comissão é “o mínimo de celebração necessário, o máximo de discussão possível”. E, desde que o muro caiu, ninguém mais foi para a cadeia por debater.
Se os orientais se queixam da sorte é porque a referência tem sido Hamburgo e Munique, não Bratislava ou Budapeste