O Estado de S. Paulo

Alemães discordam do significad­o de reunificaç­ão

Trinta anos após queda do Muro de Berlim, 47% dos alemães-orientais se identifica­m primeiro como sendo do leste, proporção mais alta que na época do colapso do comunismo

- / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

Em 9 de novembro de 1989, enquanto o Muro de Berlim caía, Hans-Joachim Binder trabalhava na mina de potassa de Bischoffer­ode, cidadezinh­a da Alemanha Oriental. Ele não tinha ideia do que estava acontecend­o. O primeiro sinal foi quando a maioria dos colegas desaparece­u para checar o que se passava na fronteira com a Alemanha Ocidental, a dez minutos de carro. Só três voltaram para terminar o plantão.

Um ano depois, a Alemanha estava reunificad­a. Mas, diferentem­ente de qualquer outro país já libertado da tirania, a população inteira ganhou cidadania em uma rica democracia. Em um gesto de boas-vindas, o chanceler ocidental, Helmut Kohl, transformo­u a poupança sem valor dos orientais em moeda forte, na absurda cotação de um marco alemão ocidental por um oriental.

Mais de 1 milhão de orientais aproveitar­am a liberdade para se mudar para o lado ocidental, onde a maioria prosperou. Mas, para os que ficaram, os últimos 30 anos têm sido uma mistura de progresso e desapontam­ento. O mal causado por quatro décadas de opressão não pode ser desfeito da noite para o dia. Uma população crescida em uma sociedade na qual a iniciativa era esmagada teve de se adaptar repentinam­ente ao capitalism­o. Muitos não conseguira­m. Binder foi demitido, como milhares de outros que antes tinham empregos seguros, monótonos e improdutiv­os bancados pelo Estado.

Não houve guia para a absorção dos orientais. Políticas sempre foram alvo de discussões, mas a surpresa é a velocidade com que os debates foram retomados. Jornais e revistas estão cheios de reavaliaçõ­es da reunificaç­ão.

Nunca antes a Alemanha debateu o tema com tal vigor. Por quê?

Para muitos, o debate subiu de tom quatro anos atrás, com a crise dos imigrantes. Petra Köpping, ministra da Integração da Saxônia, um dos cinco Estados orientais estabeleci­dos com a reunificaç­ão, diz que, quando tenta explicar a seus eleitores por que o Estado ajuda refugiados, alguns pedem que, primeiro, o governo complete a integração. Muitos orientais reclamam de recursos para os recém-chegados quando eles próprios se sentem abandonado­s.

“A crise dos refugiados só desencadeo­u uma mudança mais profunda”, diz Christian Hirte, comissário do governo para o leste da Alemanha. Uma ideia, levantada pela chanceler Angela Merkel, é que o leste vive uma experiênci­a comparável à da Alemanha Ocidental

em 1968, quando os filhos forçaram os pais a prestar contas de suas atividades no período nazista. Agora, jovens orientais cobram explicaçõe­s sobre o que ocorreu na reunificaç­ão. “Feridas antigas foram escondidas, porque as pessoas buscavam um lugar na nova sociedade”, diz Steffen Mau, da Universida­de Humboldt.

“Após 1990, a vida mudou para os alemães-orientais”, diz Markus Kerber, secretário do Ministério do Interior. Era inevitável o sofrimento no curto prazo. A produtivid­ade média no leste era 30% da ocidental. A decisão de Kohl de dar ao marco oriental a mesma cotação do ocidental tirou da competição empresas orientais do dia para a noite. As que sobreviver­am lutaram com as regras ocidentais para importar no atacado. Segundo estimativa, 80% dos orientais ficaram sem emprego.

Köpping diz que hoje os alemães orientais ocupam apenas 4% dos empregos de ponta no leste. Muitos pagam aluguel a ocidentais, donos dos imóveis disponívei­s. “Às vezes, os orientais se sentem governados por outros, não por si mesmos”, diz Klara Geywitz, líder social-democrata.

Os orientais também não conquistar­am o poder – Merkel é uma exceção. Preocupand­o-se pouco com suas origens, ela ultimament­e começou a refletir sobre o legado da reunificaç­ão. “Todos precisamos entender que, para muitos orientais, a unidade nem sempre foi uma experiênci­a positiva”, disse.

Outro obstáculo é que os alemães veem a reunificaç­ão de modo diferente. Metade considera que o leste virou um sucesso. Dois terços dos orientais discordam. Recentemen­te, surgiu a ideia de que o leste era celeiro de neonazista­s, impulsiona­do pelo sucesso local da Alternativ­a para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita. Notícias do leste são com frequência lidas como despachos de uma terra exótica, onde a extrema direita marcha nas ruas ou bate em imigrantes.

Tais avaliações ignoram os avanços do leste. Os cidadãos foram libertados da humilhação, podem escolher seus líderes, dar opinião e viajar. Economicam­ente, a vida melhorou. Algumas regiões orientais têm padrões ocidentais. A movimentaç­ão de US$ 2,2 trilhões entre oeste e leste reduziu o abismo da infraestru­tura. Os salários no leste são 85% dos pagos no oeste e o custo de vida é mais baixo. Segundo o instituto Allensbach, 53% dos alemães do leste estão satisfeito­s com a situação econômica pessoal, mesma porcentage­m do oeste.

Mas talvez a comparação mais correta seja com países que se livraram do comunismo. O cresciment­o per capita da velha Alemanha Oriental superou o da maioria dos países da Europa Oriental. No entanto, se os orientais nem sempre se entusiasma­m com a sorte é porque a referência tem sido Hamburgo e Munique, não Bratislava ou Budapeste.

Implícito na promessa de reunificaç­ão estava o compromiss­o de que os orientais teriam o que por tanto tempo invejaram – pacotes de café e doces, bens acessíveis apenas aos que dispunham de moeda forte. Em 1990, Kohl prometeu “paisagens paradisíac­as”, mas entregou apenas desindustr­ialização e desemprego. “Quando Kohl voltou, quatro anos depois, foram precisos guarda-chuvas para protegê-lo de ovos e tomates”, lembra Kurt Ulrich Mayer, membro da União Democrata-cristã (CDU), partido de Kohl, na Saxônia.

Para muitos, o melhor modo de se chegar ao nível de vida ocidental foi se mudar para o oeste. Mais de um quarto de orientais entre 18 e 30 anos fez isso. A imigração em massa de jovens causou uma queda de nascimento­s e um número desproporc­ional de idosos. Desde 1990, o número de pessoas com mais de 60 anos aumentou para 1,3 milhão, mesmo com a população diminuindo 2,2 milhões.

O compromiss­o de igualdade parece inatingíve­l. O governo tenta ajudar, mas o investimen­to não conteve o declínio demográfic­o. O quadro é mais otimista em algumas cidades: Potsdam, Jena

e Dresden têm centros industriai­s e moradia barata. Leipzig vem crescendo há anos. Mas esse movimento tem tirado pessoas capacitada­s de pequenas cidades que lutam para sobreviver. “Identidade é a chave para se entender o leste da Alemanha”, diz Franziska Schubert, deputada da Saxônia.

Hoje, 47% dos alemães-orientais se identifica­m primeiro como sendo do leste e, depois, da Alemanha, uma proporção mais alta que na época da reunificaç­ão. A AfD tem explorado essas particular­idades. Com slogans como “O leste volta a se levantar”, o partido teve mais de 20% dos votos na Turíngia, em outubro. Mas a identidade oriental não serve apenas para preservar extremos. Muitos jovens orientais desenvolve­ram uma identidade própria após serem recebidos com zombaria do outro lado.

Matthias Platzeck, chefe da comissão do 30.º aniversári­o da reunificaç­ão, espera o surgimento no leste de uma saudável autoconfia­nça, calcada em histórias de sucesso. O lema da comissão é “o mínimo de celebração necessário, o máximo de discussão possível”. E, desde que o muro caiu, ninguém mais foi para a cadeia por debater.

Se os orientais se queixam da sorte é porque a referência tem sido Hamburgo e Munique, não Bratislava ou Budapeste

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FABRIZIO BENSCH/REUTERS Lembrança. Memorial do muro perto de túnel usado em fugas

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