O Estado de S. Paulo

Justiça e opinião

- SÉRGIO ROSENTHAL ✽ ADVOGADO CRIMINALIS­TA, FOI PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO (AASP)

Há exatos 20 anos David Dunning e Justin Kruger, dois professore­s da renomada Universida­de Cornell, nos EUA, publicaram no Journal of Personalit­y and Social Psychology as conclusões de pesquisa que denominara­m DunningKru­ger effect, pela qual demonstrar­am que indivíduos que têm pouquíssim­o conhecimen­to sobre determinad­o assunto tendem a acreditar saber mais que outros muito mais bem preparados, sendo essa noção equivocada fruto exatamente de sua ignorância e consequent­e incapacida­de de reconhecer a própria incompetên­cia. Para comprovar sua tese, a partir de uma série de experiênci­as Dunning e Kruger desenvolve­ram um gráfico em que fica claro que, quanto mais ignorante sobre o tema, maior é a assertivid­ade do indivíduo e a convicção quanto à procedênci­a de suas conclusões. Vale dizer, quanto menos o cidadão sabe sobre o assunto, mais certeza tem de que suas opiniões são corretas e mais à vontade se sente para manifestá-las.

A partir do momento em que vai adquirindo real compreensã­o sobre o tema, suas certezas e convicções vão diminuindo gradativam­ente, até que, a partir de determinad­o momento, voltam a aumentar, na medida em que o cidadão se vai tornando um expert no assunto. O mais surpreende­nte, no entanto, é que o estudo revela que, mesmo após estar absolutame­nte preparado e instruído, o cidadão jamais atinge o nível de certeza que tinha quando seu conhecimen­to era mínimo.

Fossem brasileiro­s, os autores do referido estudo poderiam constatar a procedênci­a de suas conclusões diariament­e ao ler e ouvir os contundent­es comentário­s que circulam em todo o País – em rádios, jornais e redes sociais – sobre decisões judiciais, especialme­nte as proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) envolvendo casos criminais de grande repercussã­o.

Temas legais de altíssima complexida­de são analisados com incrível celeridade, e sem necessidad­e de muita reflexão, por indivíduos que jamais frequentar­am uma Faculdade de Direito, jamais compulsara­m a Constituiç­ão federal, desconhece­m completame­nte a jurisprudê­ncia de nossos tribunais, os princípios que regem o direito material e o direito processual, e não têm absolutame­nte nenhuma experiênci­a jurídica.

Com isso, milhões de brasileiro­s têm sido estimulado­s não apenas a repudiar veementeme­nte decisões judiciais que, de fato, não compreende­m, como a apoiar cegamente projetos de lei de que desconhece­m o conteúdo e cujos efeitos sociais são incapazes de vislumbrar.

É evidente que todo cidadão tem o direito de se manifestar livremente sobre temas como a possibilid­ade de prisão após o julgamento em segunda instância e as vantagens e desvantage­ns de uma lei que combata o abuso de autoridade, especialme­nte por se tratar de questões do interesse de toda a sociedade. O problema surge quando tais manifestaç­ões, decorrente­s do desconheci­mento, da desinforma­ção e, principalm­ente, da manipulaçã­o por grupos empenhados em impor seus valores e convicções, assim como seus interesses e projetos pessoais, passam a ditar o comportame­nto dos membros do Poder Judiciário e do próprio legislador.

Com efeito – e o confirmam Felipe Recondo e Luiz Weber em Os Onze: o STF, seus Bastidores e suas Crises –, a repercussã­o de suas decisões na opinião pública vem sendo tema de grande preocupaçã­o entre os ministros da mais alta Corte do País. O que dizer, então, dos magistrado­s de primeiro grau, especialme­nte os que atuam em casos rumorosos envolvendo crimes de corrupção?

Como esperar imparciali­dade de um juiz de Direito que será, sem sombra de dúvida, julgado ele mesmo, em razão de sua atuação, por uma sociedade para quem o magistrado que condena e manda prender é tido como “linha-dura” e merecedor de encômios e aplausos, enquanto o magistrado que absolve e manda soltar é publicamen­te repudiado?

Outro triste exemplo dessa preocupant­e situação é o projeto anticrime apresentad­o há alguns meses pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, dr. Sergio Moro, sem prévio debate com especialis­tas em segurança pública e operadores do Direito, especialme­nte entidades representa­tivas da advocacia, mas com apoio em ruidosa campanha publicitár­ia voltada para convencer o público leigo de que as alterações legislativ­as propostas constituir­iam uma resposta eficaz do governo ao avanço da criminalid­ade, que tanto aflige a população brasileira. O raciocínio que se busca incitar é bastante simples: cidadãos de bem são contra o crime. O projeto apresentad­o é contra o crime. Logo, não resta opção aos cidadãos de bem senão apoiá-lo, mesmo sem conhecer seu conteúdo, até porque sobre os que ousam criticá-lo ou a ele se opor (apontando incongruên­cias e violações a direitos e garantias fundamenta­is) recai a pecha de serem a favor do crime.

Dentre outras coisas, diz a Carta Magna, em seu preâmbulo, que o Brasil é um Estado Democrátic­o, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuai­s, a liberdade, a segurança, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceit­os. Pois, para que assim o seja de fato é imprescind­ível que, antes de se manifestar sobre questões como as hipóteses de cabimento dos embargos infringent­es, a ampliação do rol de causas excludente­s de ilicitude e o efeito suspensivo do recurso em sentido estrito oponível contra a sentença de pronúncia, a sociedade brasileira, cansada da corrupção e sequiosa por um País melhor, compreenda que tais temas demandam intensa e profunda reflexão e que a melhor justiça não se faz apoiando cegamente magistrado­s arbitrário­s, decisões judiciais contrárias à lei ou propostas de alteração legislativ­a que visem simplesmen­te a cercear o direito de defesa dos acusados.

Brasileiro­s têm sido estimulado­s a repudiar decisões judiciais que não compreende­m

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