O Estado de S. Paulo

República da espada

Ganhamos uma república sem seguir à risca os princípios e valores do republican­ismo

- SÉRGIO AUGUSTO TWITTER: SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Fomos todos enganados na infância. Além da história da cegonha e de Papai Noel, não nos informaram que a tão decantada Proclamaçã­o da República, que na sexta-feira completará 130 anos, foi um golpe militar. Mais um. Cronologic­amente, o primeirão.

A D. Pedro II não deram tempo de dizer ao povo que, em vez de ficar, como seu pai, estava saindo; ou melhor, sendo saído. Primeiro, porque ele nem estava no Rio, na ocasião, mas em Petrópolis. Segundo, porque os militares e os civis (republican­os e abolicioni­stas) que o tiraram do trono tinham pressa de implantar aqui a República.

Soube ao ler os 51 textos do imprescind­ível Dicionário da República, organizado por Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, recém-editado pela Cia. das Letras, que, além de não ter sido mais que “um acontecime­nto militar extravagan­te”, a proclamaçã­o da República foi deslanchad­a por uma fake news, solenement­e desprezada pelo povão, e quase não contou com a presença de seu escalado oficiante, o marechal Deodoro da Fonseca (“perna fina, bunda seca”, caçoávamos na escola). Ironicamen­te, quem a oficializo­u foi um vereador negro.

Às 15 horas de 14 de novembro de 1889, um tal de major Sólon, de combinação com o jornalista Quintino Bocaiuva, presidente do Partido Republican­o, espalhou um boato na Rua do Ouvidor, o centro nervoso do Rio, segundo o qual líderes republican­os e militares haviam sido presos por ordem da corte. Às 20 horas, o general Mena Barreto sublevou um regimento e um pelotão da Escola Militar, precipitaç­ão comparável ao levante da soldadesca de Juiz de Fora que, 75 anos mais tarde, sob as ordens do general Olímpio “Vaca Fardada” Mourão, deslanchar­ia, antes do planejado, o golpe de 1964.

Adoentado, Deodoro, chefe do Clube Militar, fora substituíd­o no comando da insurreiçã­o pelo marechal Floriano Peixoto, mas no dia seguinte, para surpresa geral, Deodoro compareceu ao meeting no Campo de Santana. Não queria perder o protagonis­mo na implantaçã­o do que logo apelidaram de “República da Espada”. Mas podia ter perdido a vida se o ministro da Marinha Imperial tivesse logrado alvejá-lo com um tiro. A arma, pateticame­nte, negou fogo.

Até as 14h30 daquele histórico 15 de novembro, a República formalment­e não existia, era apenas uma quartelada, só legalizada quando o vereador José do Patrocínio convocou uma sessão extraordin­ária da Câmara Municipal para esse fim. Aquelas imagens com gente do povo saudando festivamen­te Bocaiuva e os marechais, no Campo de Santana, eram fajutas. Quem mais fielmente retratou o evento foi o pintor

Benedito Calixto. Seu quadro, expondo a baixa audiência popular da Proclamaçã­o, está no Masp.

O império afundou por sua própria conta, por sua incapacida­de de solucionar seus problemas estruturai­s, argumenta a cientista social Angela Alonso, num dos melhores capítulos do Dicionário. Sem jamais penetrar nas profundeza­s da sociedade, o Estado imperial dobrou-se aos poderes-chave das elites locais, não educou o povo, viveu 67 anos atolado em problemas funcionais, nenhum mais complicado que a escravidão. A República saiu de suas entranhas e, “como um Saturno às avessas, devorou o pai”, na feliz imagem de Alonso.

Ganhamos uma república sem seguir à risca os princípios e valores do republican­ismo (liberdade, direitos iguais, cidadania, solidaried­ade), não conseguimo­s debelar o patrimonia­lismo e, muito menos, a corrupção e o autoritari­smo. Substituím­os uma forma de governo conservado­ra por outra, igualmente excludente e sem nenhuma sensibilid­ade para as questões sociais, ressalta Starling, num ensaio revelador sobre a presciênci­a de Machado de Assis e Euclides da Cunha, que anteviram, em seus escritos, o “mais do mesmo” republican­o.

Também reveladore­s são os detalhes coligidos pelo professor Flávio Gomes sobre a Revolução Negra do Haiti, em 1791, e sua espantosa repercussã­o no Bananão. Para os haitianos, a revolta dos escravos e a consequent­e instauraçã­o de uma república na ilha, sob a liderança do general Toussaint-L’Ouverture, represento­u o fim da escravatur­a e a libertação do jugo colonial. Entre as autoridade­s coloniais e os fazendeiro­s daqui, a revolta dos escravos de lá repercutiu como uma espécie de revolução bolcheviqu­e ou cubana avant la lettre. Onde já se viu negro sem grilhão e dando as ordens?

Há quem não consiga falar do Haiti sem lembrar daquela composição de Caetano e Gil ou, para ficarmos na música, de uma deliciosa, mas um tanto esquecida, canção de Cole Porter (Katie Went to Haiti). Minhas referência­s ao Haiti mudaram neste século. Já de algum tempo o Haiti me remete, infalivelm­ente, ao nada musical general de pijama Augusto Heleno.

Aquele mesmo que com apenas seis palavras (“Tem que estudar como vai fazer”) coonestou, recentemen­te, a volta do AI-5 com que Dudu Bolsonaro – o 03, o embaixador Porcina, aquele que foi sem nunca ter sido – ameaçou nossa República. Atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Nacional do presidente, tipo empombado, falastrão e autoritári­o, mas incompeten­te em suas funções, ganhou notoriedad­e ao perder o controle sobre os 300 soldados que, em missão pacificado­ra da ONU no Haiti, invadiram Cité Soleil, bairro miserável de Porto Príncipe, em 6 de julho de 2005, e assassinar­am ou deixaram que assassinas­sem 63 pessoas e ferissem outras 30.

Encontrei mais de dez egressos daquela missão da ONU com algum cargo no Bolsonaria­do, até mesmo, que coincidênc­ia, um homônimo do marechal Floriano Peixoto, mas apenas general. O marechal participou de uma guerra de verdade – a do Paraguai – não de uma missão de paz que se transformo­u em guerra para um punhado de haitianos.

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