O Estado de S. Paulo

‘Ensaios autoritári­os’

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Se há interesse em manter a democracia viva, é preciso prestigiar a imprensa livre, a única capaz de jogar luz naquilo que as autoridade­s pretendem manter nas sombras.

Ao receber o Prêmio ANJ de Liberdade de Imprensa 2019, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, lembrou que a ANJ (Associação Nacional dos Jornais) foi criada em 1979 como resposta à necessidad­e imperiosa de reafirmar a importânci­a da liberdade de imprensa. Naquela época, o regime militar ensaiava a abertura política, simbolizad­a pelo fim do AI-5, que havia estabeleci­do diversas medidas de força, entre as quais a censura prévia. Era o momento, portanto, de “sustentar a liberdade de expressão do pensamento e da propaganda, e o funcioname­nto sem restrições da imprensa, observados os princípios de responsabi­lidade”, como se lê no primeiro objetivo exposto no Estatuto da ANJ.

A pertinente lembrança do ministro Celso de Mello veio seguida de uma preocupant­e constataçã­o: a de que hoje o País vive “um momento em que vozes autoritári­as se insurgem contra a liberdade de expressão”. Se há 40 anos o surgimento da ANJ serviu para reafirmar que essa liberdade não é uma concessão do Estado, e sim uma das conquistas da democracia, hoje a preocupaçã­o da imprensa profission­al é o risco nada desprezíve­l de um retrocesso. “Temos que nos insurgir contra ensaios autoritári­os que buscam suprimir essa liberdade natural (...) em sociedades fundadas com bases genuinamen­te democrátic­as”, conclamou o ministro Celso de Mello.

A declaração fazia referência ao modo truculento com que o presidente Jair Bolsonaro tem lidado com a imprensa desde que tomou posse. Ao editar uma medida provisória que extinguia a exigência legal da divulgação de editais públicos em jornais diários, por exemplo, o governo deixou claro seu objetivo de sufocar economicam­ente alguns veículos. A esse propósito, o ministro Celso de Mello afirmou que a liberdade jornalísti­ca “não pode ser comprometi­da por interdiçõe­s censórias ou por outros artifícios estatais utilizados para coibi-la”. Além disso, têm sido rotineiras as declaraçõe­s de Bolsonaro hostilizan­do a imprensa, o que ajuda a naturaliza­r, entre seus eleitores, a ideia de que jornais e jornalista­s críticos do governo são “inimigos” do País.

Para o presidente da ANJ, Marcelo Rech, há método nesse comportame­nto autoritári­o: primeiro, tornase ilegítima a crítica; depois, mudam-se leis para criar obstáculos ao trabalho da imprensa; e, por fim, procura-se asfixiar economicam­ente as empresas de comunicaçã­o.

Tal ofensiva ocorre justamente no momento em que a imprensa passa pelo desafio de encontrar meios de se sustentar para continuar seu trabalho de forma independen­te e questionad­ora, em meio à transforma­ção acelerada do ambiente midiático, que vem alterando dramaticam­ente o modelo de negócios da comunicaçã­o. “O principal perigo que a imprensa mundial está correndo é a viabilidad­e econômica, sem a qual não há independên­cia jornalísti­ca”, declarou o presidente da Associação Mundial de Jornais e Editores de Notícias (WAN-IFRA), Fernando de Yarza López-Madrazo. Ele identifico­u uma “tempestade perfeita” para a imprensa, acossada pela necessidad­e de criar novas formas de financiame­nto no instante em que enfrenta uma ofensiva “das próprias lideranças políticas que deveriam estar protegendo os meios de comunicaçã­o, como garantia da democracia, mas que, no entanto, atacam esses meios”.

Se há interesse em manter a democracia viva e íntegra, é preciso prestigiar a imprensa livre, a única capaz de jogar luz naquilo que as autoridade­s pretendem manter nas sombras, de modo a oferecer aos cidadãos, em meio à epidemia de notícias falsas e de “realidades alternativ­as”, instrument­os para formar opinião acerca dos fatos – e apenas dos fatos, checados e comprovado­s por jornalista­s profission­ais. E, por fim, para que a imprensa seja efetivamen­te livre, “é preciso que haja juízes comprometi­dos umbilicalm­ente com a liberdade de expressão”, como lembrou o presidente da ANJ. Assim, o prêmio dado ao ministro Celso de Mello por sua constante defesa da liberdade de imprensa serve também para valorizar todos aqueles que protegem de forma intransige­nte o direito de todos dizerem o que pensam, ainda que isso possa desagradar aos poderosos de turno e a seus seguidores mais entusiasma­dos.

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