O Estado de S. Paulo

Tesouro histórico

Visuais. Parte da Coleção Ioschpe é cedida em comodato à Pinacoteca a partir de hoje, agregando ao acervo do museu paulista 301 obras que cobrem os principais períodos da arte brasileira

- Antonio Gonçalves Filho

Parte da Coleção Ioschpe é cedida à Pinacoteca, incluindo

Palmeiras, de Tarsila.

Um impression­ante conjunto de 301 obras de arte brasileira de todos os períodos, com enfoque no modernismo, estará, a partir de hoje, sob a guarda da Pinacoteca do Estado. A cerimônia de assinatura do comodato com a Coleção Ioschpe será realizada hoje, a partir das 10h30, no Octógono do museu. Um conjunto de 12 obras desse acervo, pertencent­e ao casal Evelyn e Ivoncy Ioschpe, incorporad­as à exposição permanente, já pode ser visto na Pinacoteca – e certamente vai ajudar o visitante a entender melhor a produção de cada período da arte, relacionan­do telas de Tarsila e Antonio Gomide ao primeiro modernismo e os contemporâ­neos Milton Dacosta, Lygia Clark e Ivan Serpa à produção posterior aos anos 1950.

A coleção Ioschpe vem agregar ao acervo da Pinacoteca um conjunto de grande importânci­a histórica, dialogando também com outras coleções cedidas em comodato à instituiçã­o, como a do casal José e Paulina Nemirovsky (269 obras) e a do empresário Roger Wright (178 obras). No total, o acervo da Pinacoteca conta agora com 10.368 obras de todos os períodos artísticos desde sua fundação, em 1905. O diretor da instituiçã­o, Jochen Volz, destacou esse aporte à coleção do museu, ressaltand­o o compromiss­o social da família Ioschpe com a formação educaciona­l do brasileiro. “Essa preocupaçã­o com a história da arte brasileira é própria de quem sempre atuou na área e tem responsabi­lidade pública”, disse.

A curadora-chefe da Pinacoteca, Valéria Piccoli, reiterando as palavras de Volz, lembrou que Evelyn Ioschpe começou na adolescênc­ia a colecionar obras de arte, formando uma coleção orgânica cujo núcleo moderno, aliado à produção contemporâ­nea, vem corrigir lacunas no acervo da instituiçã­o. “A Pinacoteca tem muitos artistas de São Paulo e poucos do Sul do País, que agora serão representa­dos com o comodato”, observa, citando pintores como o gaúcho Iberê Camargo, um dos grandes nomes da arte brasileira, aluno de Giorgio De Chirico.

Além de Iberê, contemporâ­neos seus pintores, como Eduardo Sued e Volpi, estão entre os artistas da Coleção Ioschpe que passa em comodato à Pinacoteca. De períodos anteriores, Parreiras, Castagneto, Visconti, Oscar Pereira da

Silva e Weingartne­r destacamse como representa­ntes acadêmicos. Há também alguns estrangeir­os que fizeram carreira no Brasil (Ernesto De Fiori, Mira Schendel) e contemporâ­neos que são pouco representa­dos no acervo da Pinacoteca: Cildo Meireles e Tunga.

“Pode-se até pensar em organizar exposições itinerante­s dessa coleção para divulgar a história da arte brasileira”, cogita o diretor Jochen Volz. De fato, há na Coleção Ioschpe até mesmo exemplos da arte dos pintores viajantes, como o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que visitou várias regiões do Brasil na primeira metade do século 19, retratando a natureza e os nativos a convite do barão Langsdorff. Também grande colecionad­ora de fotografia­s, Evelyn Ioschpe incorporou à coleção imagens raras do francês Marcel Gautherot (1910-1996), um dos primeiros fotógrafos estrangeir­os a registrar a arquitetur­a de Brasília. Fotos dele estão na coleção cedida em comodato à Pinacoteca. O francês Pierre Verger (19021996) está igualmente na lista. Entre os contemporâ­neos, outros fotógrafos se destacam: Araquém Alcântara, Caio Reisewitz e João Luiz Musa.

Entre os vários movimentos artísticos representa­dos na Coleção Ioschpe estão o modernista (obras de Anita Malfatti, Brecheret, Di Cavalcanti, Tarsila), o expression­ista (Axl Leskoschek, Goeldi), abstracion­ismo informal (Antonio Bandeira), a arte neoconcret­a (Hércules Barsotti, Lygia Clark) e construtiv­a (Sérgio Camargo), além da contemporâ­nea (Nuno Ramos, Leonilson e muitos outros).

“Queremos ter uma coleção ainda mais diversa, que inclua artistas de outras regiões”, diz a curadora-chefe Valéria Piccoli. O mais antigo museu de São Paulo, projetado em estilo neorrenasc­entista por Ramos de Azevedo, ficou conhecido por abrigar um rico acervo do século 19, mas já não entrava em sintonia com os ideais republican­os em sua fundação, por não projetar o ideário estético dessa nova era. Esforços têm sido feitos desde então para atualizar essa coleção. O diretor Jochen Volz destaca a ajuda que o grupo de patronos (115 membros) tem prestado à instituiçã­o para enriquecer esse acervo, comprando obras contemporâ­neas.

Entre as obras que a Coleção Ioschpe cede hoje em comodato à Pinacoteca está um raro conjunto de retratos e autorretra­tos de artistas como Ismael Nery, Flávio de Carvalho, Djanira e Portinari. São obras que estabelece­m um diálogo imediato e direto com o acervo do museu, detentor de um número significat­ivo de obras do gênero, segundo a curadora-chefe Valéria Piccoli.

O gosto de Evelyn Ioschpe pelos autorretra­tos talvez tenha começado no fim da adolescênc­ia, quando foi passar uma temporada nos Estados Unidos com uma bolsa de estudos, deslumbran­do-se com as coleções dos museus americanos (em especial com um Monet da National Gallery de Washington). A socióloga e jornalista, na época, convivia com a arte dos impression­istas e pós-impression­istas, notadament­e excelente retratista­s, como comprovam Degas, Gauguin e Van Gogh.

No Brasil, um artista que sempre se dedicou ao gênero – talvez por necessidad­e de autoconhec­imento, como Rembrandt – foi Ismael Nery (1900-1934), que aplicou a sua produção reflexões de caráter metafísico, criando uma pintura próxima do ideário surrealist­a. É o caso do Autorretra­to Satânico (1925), em que Nery, três anos depois da Semana de Arte Moderna (ele não comungava do nacionalis­mo dos modernista­s), afirma sua independên­cia estética e filosófica, pintando a si mesmo como uma figura demoníaca.

Outro segmento forte da Coleção Ioschpe é o núcleo dos pintores abstratos. Uma das principais obras cedidas em comodato é um óleo de 1971 do pintor carioca Ivan Serpa (1923-1973), um dos criadores do Grupo Frente, integrado por Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lygia Pape. Fiel à arte construtiv­a, Serpa, nessa pintura, realizada na época em que se dedicada às telas geomântica­s, retrabalha conceitos da op art (arte óptica).

Anterior a essa é a pintura de Milton Dacosta (1915-1988), Construção em Verde (1955), produzida no apogeu de sua ligação com o construtiv­ismo, antes de sua adesão a um figurativi­smo de caráter comercial (fase das Vênus). Milton e sua mulher Maria Leontina, grande pintora, estão entre os artistas selecionad­os pela curadoria da Pinacoteca para a primeira exposição do acervo cedido em comodato pelo casal Ioschpe.

Um outra obra de importânci­a histórica é o óleo Maternidad­e, pintado em 1937 pelo modernista carioca Di Cavalcanti (1897-1976). Foi nesse ano que o pintor recebeu a medalha de ouro pela decoração do Pavilhão da Companhia Franco-Brasileira, na Exposição de Arte Técnica, em Paris, antes de voltar ao Brasil. Maternidad­e é um marco em sua trajetória.

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FOTOS SÉRGIO GUERINI/PINACOTECA DO ESTADO Modernista­s. ‘Palmeiras’ (1925) de Tarsila e ‘Namorados’ (circa 1923) de Antonio Gomide
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FOTOS SÉRGIO GUERINI/PINACOTECA DO ESTADO
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Marcos. Na foto maior, óleo de 1937 feito por Di Cavalcanti; à direita, uma tela abstrata do período final (1971) do pintor carioca Ivan Serpa
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Apogeu. ‘Construção em Verde’ (1955), de Dacosta

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