O Estado de S. Paulo

Bolsonaro é contra a segunda instância?

- JOSÉ NÊUMANNE JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Qualquer brasileiro com mais de 12 anos e quociente de inteligênc­ia acima de 30 sabe de duas coisas essenciais sobre o presidente da República. A primeira é que ele fez toda a carreira política de vereador e deputado federal como representa­nte da extrema direita nostálgica do regime militar, armamentis­ta e inimiga da esquerda, da indústria da multa e da votação eletrônica. A segunda, que só é presidente pelo eventual apoio de antipetist­as, devotos do combate à corrupção e exaustos da crise da economia estatista. A fé dos primeiros levou-o à campanha e a esperança dos outros, à vitória.

Esses grupos foram essenciais para sua passagem para o segundo turno e, mais ainda, pelos 57.796.986 votos (55,13% dos válidos) com que afastou do mais poderoso posto Lula, encarnado no poste do PT Fernando Haddad. No 11.º mês de mandato, o vencedor tem mantido sua fidelidade aos seguidores de origem, comandados nas redes sociais pelo filho Carlos, vereador no Rio de Janeiro, que ele sempre trata como artífice do feito. Daí a pauta prioritári­a do combate à ideologia nas escolas, do decreto das armas, do cancelamen­to de radares nas rodovias, da ecologia tornada substrato da ideologia socialista e agora do uso da renúncia de Evo Morales na Bolívia para substituir o voto eletrônico pelo impresso.

A reforma da Previdênci­a, a aprovação da Medida Provisória (MP) da Liberdade Econômica e o lançamento do Plano Guedes, propondo a maior reforma da gestão pública na História, demonstram que os entusiasta­s da economia liberal, à Escola de Chicago de Milton Friedman, têm algo a comemorar. Mas o mesmo não se pode dizer dos avessos ao líder do PT e suas práticas de corrupção no maior assalto aos cofres públicos da História. Nem do compromiss­o de campanha de não permitir a continuaçã­o do processo de desmoraliz­ação e desmantela­mento da mais popular operação de combate à corrupção da História, a Lava Jato, personific­ada em Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Em 21 de novembro de 2018 ele anunciou seu advogado-geral da União, o funcionári­o de carreira André Mendonça, apadrinhad­o toda a vida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Em 30 de outubro de 2002, Mendonça bajulara Lula, recémeleit­o, sem lhe citar o nome, na Folha de Londrina: “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfian­do, mas certamente convictos de que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidad­a a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”.

Só quem não tivesse conhecimen­to dessa confissão de devoção se surpreende­ria com duas decisões coerentes do pastor presbiteri­ano criacionis­ta (que não admite a evolução das espécies de Darwin) de apoio ao permanente padrinho. No cargo, destacou-se do mar de críticas generaliza­das nos meios jurídicos de vergonha na cara contra dois despautéri­os de seu patrono. O primeiro foi o banquete milionário de medalhões de lagosta e vinhos três vezes premiados. O segundo, o decreto infame autorizand­o a perseguiçã­o a quaisquer críticos dos 11 ministros do STF, seus parentes e aderentes, que se mantém sem aval do plenário. Com o recuo da ainda mais cretina censura à revista Crusoé, que havia revelado o codinome de Toffoli no propinodut­o da Odebrecht, “amigo do amigo do meu pai”, segundo Marcelo em pessoa.

Isso não incomodou o chefe. Ao contrário. Durante o ano inteiro, Jair Bolsonaro anunciou a indicação de Mendonça para a vaga a ser aberta daqui a um ano pela aposentado­ria do decano Celso de Mello, no STF. O afilhado de Toffoli, tido pelo chefe como “terrivelme­nte evangélico”, também já foi dado como “mais supremável” do que Moro.

Neste ínterim, Maquiavel Toffoli, seguido pelo colega Gilmar Mendes, proibiu, em novo escárnio jurídico, o Ministério Público do Rio de investigar eventual participaç­ão do primogênit­o do presidente, Flávio Bolsonaro, num esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativ­a daquele Estado. Entremente­s, o Conselho de Atividades Financeira­s (Coaf), que deu aos procurador­es as evidências para abertura de inquérito, voltou do Ministério da Justiça de Moro para o da Economia e, depois, para o Banco Central, com anuência do presidente. A notícia foi dada como evidência do desgaste do ministro, avalista para o público do compromiss­o com o eleitor pela manutenção do combate à corrupção e de força à Lava Jato.

Enquanto outro festejado herói da operação, Dallagnol, enfrenta as feras de Renan Calheiros no Conselho Nacional do Ministério Público, Bolsonaro esqueceu o coordenado­r da força-tarefa de Curitiba na escolha do procurador-geral da República. Nomeou para o cargo o amigo de um amigo de algum filho, Augusto Aras, que faltou a duas sessões em que o STF soltou os chefões da quadrilha petista, tendo sido substituíd­o pelo subprocura­dor José Bonifácio Borges de Andrada. E este deixou sem resposta calúnias cuspidas sem nenhuma prova no voto de Gilmar Mendes, que nada tinham que ver com o assunto votado.

Bolsonaro não criticou publicamen­te a distorção da Constituiç­ão para soltar bandidos de colarinho branco. Depois da repercussã­o popular, associouse às críticas do ministro Moro para responder timidament­e à acusação de um deles, Lula, de que governa para milícias cariocas. Como o novo secretário da Receita afastou auditores acusados por Gilmar de terem incluído o nome de sua mulher, Guiomar, e o da do colega Toffoli, Roberta Rangel, na lista de contribuin­tes suspeitos, convém questionar se ele discorda mesmo dos votos de ambos contra a jurisprudê­ncia que autorizava o começo de cumpriment­o de pena de condenados na segunda instância.

Alguém acha que o presidente ficará contra Toffoli, a quem deve a imunidade do filho?

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