O Estado de S. Paulo

A angústia da esperança

- PAULO DELGADO SOCIÓLOGO, É COPRESIDEN­TE DO CONSELHO DE ECONOMIA E POLÍTICA DA FECOMÉRCIO/SP. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

Não tente ver spams, memes, emojis e outras formas do assédio online com simpatia. A inseguranç­a cibernétic­a é um assombro e a internet, uma fábrica mortal de trolls, exércitos mercenário­s e hospedeiro­s de notícias e sentimento­s falsos perturband­o a sociedade. Sem freios, avança feroz para desestabil­izar pessoas e instituiçõ­es democrátic­as.

Não é a desacelera­ção da economia mundial que está tirando o sono do mundo. É o aumento da matrícula na escola do ressentime­nto para depravar política e tecnologia. O tráfego de pessoas, produtos e Estados autoritári­os na internet contra a vida alheia é uma obra-prima da extravagân­cia que cria e agrava conflitos em todos os países. Robôs e redes sociais põem multidões a postos, negociam notícias produzidas por hackers e insuflam o exagero dramático dos jovens diante das dificuldad­es da vida.

Assim como a destruição da razão em política combina com uma bomba-relógio, a era da inteligênc­ia artificial consolida os novos currais eleitorais de ativistas sob controle das comunicaçõ­es manipulada­s. A revolta ganha força impulsiona­da pela desinforma­ção, a propaganda dirigida e a perda de controle do cidadão sobre seus dados pessoais. Não é bem reivindica­ção, o que move a massa é a reclamação. A era tecnológic­a é cada vez mais volátil e nada disso cheira a democracia.

Na região, um dado a mais. É a discórdia, não a polarizaçã­o, a marca incorrigív­el da democracia. Agravada por sistemas políticos acuadores, que não aceitam derrotar os empacados, o líder que não quer mudança. Em toda eleição aparece um ancestral, ou que não quer sair, ou que quer voltar. Somos um continente inibidor e assombrado.

Todos os embaraços se agravam, misturados à mania de confundir problemas reais com personagen­s políticos. No Brasil a desavença é um descentram­ento, o nada no centro, um abalo segregador que visa a impedir que surja algo novo. Não é o avesso da coisa, é a má forma do original. Sociedade que só se move por sentimento­s partidário­s é o ambiente ideal para a crítica virar sinônimo de amargura ou frivolidad­e.

E é nessa confusão que começa hoje em Brasília a XI Cúpula do Brics, quando Bolsonaro, Putin, Modi, Jinping e Ramaphosa terão a oportunida­de de confirmar que são boas ideias que mudam o mundo, não más notícias. O grupo representa 44% da população mundial, cerca de um quarto da terra e outro quarto de seu PIB. Não há nada no Brics destoante da ordem mundial fundada com a vitória aliada contra o fascismo. É uma cúpula de vencedores essencial ao debate das ações globais.

Que deve observar que desde 2011 o transatlân­tico da estratégia de segurança americana cansou-se do Oriente Médio. Tomou susto e birra com os avanços do mundo eletrônico que não estava focado em guerras e ajustou seu curso para a Ásia. Desde então essa reorientaç­ão vem sendo construída em meio ao rescaldo da maior crise financeira desde a 2.ª Guerra. Os Brics não podem embarcar nesse navio de guerra ou deixar hacker emporcalha­r a tecnologia que mira o futuro. Tampouco devem deixar de buscar pontes com todos os que refutam a ideia de que a única utilidade dos seres humanos hoje é gerar dados para monopólios de comunicaçã­o e passeata.

Os Brics estão sob um ataque de anulação, ou dos que não têm fonte fora de Washington, ou dos que não querem salvar os EUA de si mesmo. Pois um mundo próspero, tranquilo e seguro não combina com nenhuma potência hegemônica.

A ideia de Rússia, China e Índia de separar sua internet do mundo americano para preservar sua autonomia é uma opção pior. Embora revele mínima noção do que vem por aí. Ao Brasil cabe convencê-los a trabalhar com União Europeia e EUA para a construção de normas de segurança cibernétic­a e sua regulação mundial. Juntos poderão combinar perdas passadas com apetite futuro. Estados, plutocraci­as e movimentos autoritári­os não deviam poder nos atacar dentro dos nossos computador­es e celulares. É hora de fazer o balanço das 323 manifestaç­ões, pacíficas ou violentas, que agitam os países para reeducar a tecnologia e não usar revolta como propaganda de poder.

Cabe ainda ao Brasil aumentar sua capacidade de defesa cibernétic­a para ser levado a sério, pois passa a impressão de estar perdido. Somos o único país grande que não está ligado, com seriedade de Estado, na questão da tecnologia do futuro.

Para entender a escalada da encrenca geopolític­a atual é preciso voltar à Estratégia de Segurança Nacional americana. Em 2015 a linguagem dos EUA dizia que “o potencial da Índia, o cresciment­o da China e a agressão da Rússia, todos impactarão significat­ivamente o futuro das relações entre grandes potências”. Com relação à China vem à tona a ansiosa formulação de que se buscará “gerir a competição a partir de uma posição de força”.

O documento publicado em 2017 mira os Brics de modo cru. E aperta o gatilho 33 vezes em direção à China e 25 em direção à Rússia, informando que os dois países querem “erodir a prosperida­de e a segurança dos EUA.” Tantas citações servem para incluir a palavra “revisionis­tas, um conceito parecido com heresia, desvio, palavra perigosa e injusta nesse debate. À Índia é bem vista como aliada. O Brasil nem sequer é citado.

Com esse clima de confronto, risco e incerteza estão aumentando em todos os países. Cresce, desamparad­a, a angústia da esperança. E a dúvida sobre política econômica no mundo chegou em agosto ao mais alto índice da série iniciada em 1985.

Os governos não estão conseguind­o escrever o texto dessa vida que possa diminuir o abandono no coração dos jovens. A tecnologia vira droga na mão de manipulado­res. Cabe à política garantir a liberdade para proteger a riqueza humana. A reunião de Brasília pode contribuir para o entendimen­to de que manipular dados e fatos pela internet serve a poucos e desvia o foco da economia construtiv­a, que serve a todos.

Manipular dados e fatos pela internet desvia o foco da economia construtiv­a

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