O Estado de S. Paulo

Crises na América do Sul devem ficar fora da cúpula do Brics

Divergênci­as políticas entre Brasil, Rússia e China evitarão menções a Bolívia, Venezuela e Chile

- Felipe Frazão / BRASÍLIA

A discordânc­ia entre o Brasil e os demais países do Brics sobre as crises na Bolívia e na Venezuela deve impedir um posicionam­ento comum sobre os conflitos políticos durante a reunião da 11.ª cúpula dos países emergentes, cujos líderes se reúnem hoje e amanhã, em Brasília. Os casos devem ficar restritos aos encontros bilaterais. Os presidente­s da China, Xi Jinping; da Rússia, Vladimir Putin; da África do Sul, Cyril Ramaphosa; e o premiê da Índia, Narendra Modi, desembarca­m no Brasil com o continente sul-americano em convulsão social.

O Brasil é o único do Brics a trabalhar contra Nicolás Maduro e a reconhecer Juan Guaidó como o presidente legítimo da Venezuela. Também foi o único país a interpreta­r como processo democrátic­o a queda de Evo Morales na Bolívia. “O governo brasileiro rejeita inteiramen­te a tese de que estaria havendo um ‘golpe’”, disse ontem o Itamaraty, em nota.

A posição diplomátic­a brasileira se choca com as recentes declaraçõe­s de Rússia e China – Índia e África do Sul não se pronunciar­am. Nos últimos dois anos, Xi Jinping e Putin assinaram novos acordos estratégic­os com Evo para construção de uma usina nuclear nos Andes, com dinheiro russo, e venda aos chineses de quinoa, café e até carne boliviana.

Os russos trataram a derrubada de Evo como um “golpe de Estado bem orquestrad­o”, destacaram a “violência da oposição” e, em recado ao Brasil, pediram uma abordagem responsáve­l dos países influentes, incluindo os vizinhos. Assessores do Kremlin querem tratar do caso em agenda bilateral com o presidente Jair Bolsonaro, paralela ao encontro do Brics. Em tom mais ameno, os chineses evitaram tomar lado e pediram aos envolvidos na disputa uma “solução pacífica nos limites constituci­onais” que “restaure a estabilida­de social”.

Fontes da diplomacia brasileira envolvidas nos preparativ­os afirmam que os conflitos não devem surgir nas sessões da cúpula – são dois encontros conjuntos dos cinco chefes de Estado e de governo, na qual cada um faz um discurso aos demais. Até a tarde de ontem, quando as

Declaração final

A Declaração de Brasília normalment­e passará pelo crivo de todas as delegações, com cada vírgula sendo negociada com diplomatas de Rússia, Índia, China e África do Sul. conversas de três dias se encaminhav­am para o fim, não havia menção a esses países. O mais provável é que a instabilid­ade política regional também escape à Declaração de Brasília, o documento oficial do Brics, negociado com as delegações. É comum que conflitos regionais constem no texto, mas, para isso, deve haver convergênc­ia de posições entre os cinco líderes, o que inexiste no caso da Bolívia e da Venezuela.

Interesses. As diferenças políticas levaram o governo Jair Bolsonaro a organizar uma cúpula enxuta, fechada à participaç­ão de países latino-americanos como convidados e voltada à cooperação pragmática, em áreas como economia digital, saúde, ciência e combate à corrupção. Há, porém, uma demanda de países como China e Rússia para fortalecer a integração política e a confiança mútua no bloco.

Isso pode levar os conflitos boliviano e venezuelan­o a serem tratados isoladamen­te, em reuniões bilaterais que os líderes costumam promover à margem do Brics. A Rússia já anunciou a intenção de conversar sobre o caso com Bolsonaro, em reunião no Palácio do Planalto. E Bolsonaro se compromete­u a tentar pedir apoio para Guaidó em todas as oportunida­des de contato.

As mudanças políticas e tensões sociais intensific­aram-se nas últimas semanas: protestos de rua derrubaram o governo

Evo na Bolívia e emparedara­m os presidente­s Sebastián Piñera, no Chile, e Lenín Moreno, no Equador.

Houve ainda reviravolt­a eleitoral na Argentina, com a eleição do kirchneris­ta Alberto Fernández, o abandono do acordo de paz pela guerrilha na Colômbia de Iván Duque, a ameaça de impeachmen­t de Mario Abdo Benítez, no Paraguai, e o fechamento do Congresso por Martín Vizcarra, no Peru.

Além disso, na semana da cúpula, a crise mais grave do continente, na Venezuela, deve ter novos capítulos, com o oposicioni­sta Juan Guaidó convocando levantes populares contra Nicolás Maduro para o sábado, com intenção de tirar o chavista do poder com apoio das Forças Armadas e polícias, inspirado na agitação que levou à renúncia de Evo.

O cenário poderia compelir o Brics a abordar a realidade continenta­l na Declaração de Brasília – o documento, tradiciona­lmente, dedica alguns parágrafos a externar posições sobre conflitos ao redor do mundo e exortar os envolvidos a uma saída pacífica e negociada, em nome da “paz e da estabilida­de”. Mas interesses políticos e econômicos conflitant­es dificilmen­te permitirão uma manifestaç­ão mais firme e tendem a impedir até menção aos casos boliviano, venezuelan­o e chileno.

 ?? GABRIELA BILÓ/ESTADÃO ?? Preparativ­os. Problemas mais graves devem ser discutidos apenas em reuniões bilaterais
GABRIELA BILÓ/ESTADÃO Preparativ­os. Problemas mais graves devem ser discutidos apenas em reuniões bilaterais

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil